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Publicado em

27/06/2024

A perspectiva das periferias brasileiras sobre o Bem Viver nas cidades

Em entrevista à Revista Casa Comum, representantes de diferentes territórios periféricos do Brasil comentam os desafios históricos vivenciados diariamente em locais onde, em muitos casos, ainda há ausência do poder público e como é possível melhorar essa relação.

Por Maria Victória Oliveira

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Morro do Timbau, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Foto: Rosilene Miliotti.

Moradores de periferias morrem 15 vezes mais por eventos climáticos extremos, diz IPCC”. “Estudo mostra que moradores da periferia comem mais ultraprocessados”. “Saúde mental: Moradores de periferias e favelas sofrem com falta de atendimento”. “Para especialista, falta de saneamento nas periferias é racismo ambiental”. “Sem infraestrutura e acesso à saúde, população periférica é mais prejudicada por variações no clima”. 

As manchetes das reportagens online mostram que as populações periféricas estão e sempre estiveram mais sujeitas e expostas aos aspectos negativos de questões e desafios que a sociedade enfrenta de forma geral. 

Maria Ribeiro. Foto: Arquivo pessoal

Para Maria Ribeiro, produtora de conteúdo do data_labe, organização da sociedade civil em formato de laboratório que promove a democratização do conhecimento por meio da geração, análise e divulgação de dados com foco em raça, gênero e território a partir do Complexo da Maré, um bairro composto por 16 favelas e 140 mil habitantes localizado na zona Norte do Rio de Janeiro, não dá para falar sobre as populações periféricas sem citar o racismo ambiental. 

Natural do Ceará e criada na Maré desde os dois anos, Maria é codesenvolvedora do Cocôzap, uma iniciativa de mapeamento, incidência e participação cidadã do data_labe sobre saneamento básico em favelas, no qual as pessoas enviam para um número de WhatsApp denúncias, fotos, vídeos e narrativas sobre lixo e esgoto no Complexo da Maré. 

Ela analisa o contexto de falta de saneamento básico como uma postura de descaso com a saúde das pessoas, o que também se reflete nas precárias condições do ar da Maré, uma vez que a região está exposta a grandes vias expressas do Rio de Janeiro, o que contribui para que a população local respire, diariamente, um ar poluído. 

Urgência do ar da Maré

O estudo Respira Maré – Diagnóstico sobre ilhas de calor e qualidade do ar nas 16 favelas da Maré aponta que a exposição a altos índices de material particulado (PM) – ampla gama de partículas, como poeira, fumaça e poluentes atmosféricos, que podem conter metais pesados, substâncias tóxicas e produtos químicos nocivos que podem ser inalados – pode aumentar o risco de doenças respiratórias e cardiovasculares, agravar condições médicas preexistentes, afetando desde crianças – “O efeito na função pulmonar e cognitiva de crianças começa na exposição dentro do útero da mãe, já que o material particulado atravessa a barreira da placenta”, como traz trecho do estudo – até mesmo idosos, por maior risco de infarto e acidente vascular cerebral (‘derrame’).

E é a partir da fala de Maria que é possível perceber como se tratam de desafios conectados e integrados. A poluição do ar é tamanha, em partes, porque a Maré praticamente não conta com áreas arborizadas e de respiro. “Não temos nem um espaço com árvores para dar uma ajuda tanto no calor como na filtragem do ar”, comenta, citando também a problemática das ilhas de calor na região, espaços com temperaturas elevadas se comparadas ao entorno. 

Desafio histórico da moradia e o surgimento de favelas 

Mas se o Complexo da Maré fica localizado em uma região de tanta exposição à poluição, por que as pessoas moram ali, para começo de conversa? Para responder a questão, é necessário voltar no tempo. 

Renato Pequeno. Foto: Arquivo pessoal

Renato Pequeno, arquiteto e urbanista, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB), defende que o desafio da moradia no Brasil começa quando ainda havia a casa grande e a senzala, onde a população escravizada dormia e era trancada pelo lado de fora. 

“O grande problema da moradia nas cidades acontece quando, ao final da escravidão, não houve nenhuma preocupação com essa questão”, aponta. “A partir dos trabalhos da professora Licia do Prado Valladares, que busca investigar sobre a origem da favela, percebemos que estão associadas aos primeiros quilombos que surgem no entorno das cidades. No caso do Rio de Janeiro, a população que foi para as cidades foi morar precariamente nos cortiços na área central. Só que essas cidades começaram a passar por grandes reformas higienistas. Sabemos que para construir, por exemplo, o Theatro Municipal do Rio, ou para abrir uma grande avenida como Avenida Presidente Vargas, demanda a demolição desses cortiços e essa população que estava vivendo lá, sem ter onde morar, foi ocupar os morros”, aponta. 

Brasil continental: os dilemas das cidades diante da perspectiva do Bem Viver

Maria e Renato foram dois dos seis entrevistados para a reportagem Em Destaque da 9ª edição da Revista Casa Comum, que trouxe o debate “O direito ao Bem Viver em meio às diferenças das cidades brasileiras”. O PDF da 9ª edição na íntegra já está disponível no site da Revista. Acesse aqui

Em sua fala, Maria também aponta o descaso histórico com a população periférica. Sem diretrizes claras de planejamento urbano, a população passa a construir suas casas – dando origem às favelas – da forma “que dava para ser feito”, conta a social media, sem interferência ou preocupação por parte do Estado para uma política que beneficiasse as pessoas. 

É aí que entra o trabalho da Secretaria Nacional de Periferias.  

Reparação histórica: a criação da Secretaria Nacional de Periferias.

“As favelas e as periferias são uma marca presente nas cidades brasileiras e, evidentemente, isso tem uma relação com a história da formação social do Brasil, em que depois de séculos de um processo de escravização, o país não conseguiu, não pôde e não quis elaborar um projeto de sociedade que fosse minimamente inclusivo e que, de alguma maneira, observasse as necessidades dessas populações. Desde então, elas passam a ter negados os seus direitos básicos, como o acesso à terra, à moradia, ao trabalho. Até mesmo da assim chamada ‘classe trabalhadora’ essas populações foram excluídas.” 

Guilherme Simões. Foto: Leandro Vaz

A frase é de Guilherme Simões, cientista social, mestre em Serviço Social, professor de sociologia, educador popular e a primeira pessoa à frente da Secretaria Nacional de Periferias (SNP), uma das cinco secretarias do Ministério das Cidades (MCID). 

Guilherme cita quase que um sentimento de abandono por parte de populações periféricas, e, nesse sentido, a SNP é criada, segundo seu ponto de vista, como um instrumento de reparação histórica. 

“O Estado brasileiro demora para reconhecer as suas dívidas com o povo. Ele não só foi, durante muito tempo, um Estado que criminalizou a pobreza, que perseguiu e abandonou os mais pobres à própria sorte, mas quando começa a fazer um processo de autoconhecimento de seu papel e reconhecimento das mazelas da sociedade, demora para reconhecer e para criar arranjos que possam servir como reparação. Eu acredito que a Secretaria Nacional de Periferias deve ser entendida como mecanismo de reparação histórica do Estado brasileiro perante as populações mais vulneráveis.”

Quando questionado sobre a possibilidade de elencar prioridades na pauta da periferia, Guilherme defende que se trata de um desafio múltiplo e multidimensional. Ou seja, não é possível pensar que somente a moradia de forma isolada ou a educação vai resolver a questão. “No que diz respeito às populações mais pobres do Brasil, é fundamental que se pense de forma múltipla, e que os mecanismos de acesso aos bens e aos direitos negados ou fragilizados historicamente devem se conectar e estar integrados, para que a gente consiga minimamente combater essa mazela que é a desigualdade social no nosso país.” 

Competências da SNP 

Segundo o Art. 31 do Decreto 11.468/2023, são 13 as competências da Secretaria Nacional de Periferias que envolvem diferentes temáticas, como redução de desigualdades, habitação, políticas de meio ambiente e transição ecológica, aperfeiçoamento de processos de estudos e pesquisas sobre riscos de desastres, e mais. 

Entre as competências estão: 

– I – formular e propor, em articulação com os demais órgãos e entidades competentes, a política integrada e transversal de intervenção nos territórios periféricos, que envolva todas as políticas urbanas e sociais, com o objetivo de reduzir as desigualdades nas cidades;
– V – fomentar, em articulação com os órgãos e as entidades competentes, a transversalidade das políticas públicas de meio ambiente e de desenvolvimento econômico e social, com vistas ao desenvolvimento urbano sustentável e à transição ecológica;
– VII – apoiar a elaboração de planos de desenvolvimento socioterritorial integrado e implementar as ações vinculadas de habitação de interesse social e de redução das desigualdades socioterritoriais. 

Potência em meio à vulnerabilidade 

Ao integrar uma organização que trabalha com a geração cidadã de dados, Maria aponta que, assim como o data_labe no Complexo da Maré, muitas periferias por todo o Brasil estão produzindo seus dados e sua ciência, que representam formas de pensar a sua história. 

Por isso, a jovem reforça a importância de que sujeitos periféricos tenham espaço em locais de tomada de decisão, e possam apresentar suas necessidades, na contramão de aceitar soluções prontas pensadas por pessoas de fora. “Outro dia, ouvi uma frase muito interessante: ‘se você fala de mim sem mim, você tá falando contra mim’. Então isso também é algo que a gente tem a contribuir para o restante da cidade. Se vocês querem saber sobre nós, deixem que a gente conta. Se você quer trazer alguma melhoria para cá, deixa que te conto o que eu preciso. Não vem fazendo qualquer coisa que você acha que é melhor.” 

A fala de Maria aparece em outras palavras nas redes sociais de Guilherme, onde não é difícil encontrar os dizeres “periferia é potência”. Entretanto, o secretário defende que ‘não é possível tapar o sol com a peneira’ e, com isso, ignorar inúmeras faltas que territórios periféricos sofrem diariamente. 

“Quando a gente fala de potência, tem gente que quer esconder, quer transformar simplesmente o feio em bonito num passe de mágica. E não é não é disso que se trata a potência. A potencialidade da periferia só existe porque existe uma carência estrutural. Nós não podemos construir uma homenagem, uma ode a ideologia neoliberal do empreendedor por si próprio. Isso é um perigo também e é uma disputa que nós temos que fazer na sociedade.” 

Para Guilherme, é necessário considerar que as populações periféricas ‘já se viram’. Nesse sentido, organizações e instituições públicas precisam estar dispostas a analisar soluções elaboradas que já funcionam nos territórios e potencializá-las, algo que só o Estado tem capacidade para fazer. 

“As cozinhas solidárias foram uma iniciativa nos momentos de crise da pandemia e hoje [a iniciativa] se tornou um programa de governo. Elas não foram inventadas no gabinete por um especialista. Felizmente o governo fez questão de reconhecê-las e agora passa a fomentá-las e estimulá-las para que esse tipo de experiência que ocorre nas comunidades possa ter reconhecimento e o Estado e o governo passe a ter legitimidade nessa relação com a população. Não é chegar no território e perguntar “o que você tem a me dizer?”, mas sim “o que você já está fazendo e como posso ajudar a dar escala? Para que de 10 vire 100, e de 100 vire mil?”, aponta o secretário. 

Ações da SNP

Em pouco mais de um ano e seis meses de existência da Secretaria Nacional de Periferias, Guilherme celebra, em post do Instagram, algumas das iniciativas já realizadas nesse período. 

Uma delas é o Prêmio Periferia Viva, uma iniciativa criada ainda em 2023 com o objetivo de promover ações e projetos que contribuem com a redução das desigualdades sociais e territoriais, reconhecendo as periferias como áreas de potência e criatividade. A primeira edição selecionou 54 iniciativas sociais em territórios periféricos de todo o Brasil

Arte: @difavela_arte

O Prêmio fez sucesso e, para 2024, ganhou nova edição com o tema “Periferia Viva é Periferia Sem Risco” e nova identidade visual. O novo edital será lançado em 29 de junho. Ao todo, serão destinados 150 prêmios de R$50.000,00 e 25 prêmios de R$30.000,00 para as iniciativas vencedoras.

Outro projeto da SNP que já saiu do papel é o Mapa das Periferias, uma plataforma interativa criada para reunir e sistematizar dados e informações sobre as periferias e comunidades urbanas do Brasil, suas demandas, potencialidades e vulnerabilidades. 

Com início em outubro de 2023, o projeto é uma parceria entre a SNP e a Fiocruz, com duração prevista de dois anos. Nesse período, serão desenvolvidas diferentes ações para a construção da ferramenta, como: mapeamento dos territórios periféricos, consolidação de conceitos, base de dados e metadados, diálogo e mobilização das comunidades, uso de tecnologias livres e adesão à Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE).  

Ao todo, já são mais de 480 registros, que variam de iniciativas de planejamento urbano, saúde integral, soberania alimentar, economia solidária, cultura, entre outros. É possível aplicar diferentes filtros de busca.   

O mapeamento conta com a possibilidade de cadastro de iniciativas. Basta acessar esse link

O que é o Bem Viver para quem é periférico(a)? 

Para Maria, falar em Bem Viver para pessoas periféricas é falar em direitos básicos que, muitas vezes, não são assegurados a essas populações. O direito à qualidade de vida que envolve o acesso a um parque e ruas arborizadas como uma forma de amenizar o calor e clima abafado, mas também é ter acesso ao lazer. Nesse sentido, Maria cita outras problemáticas, como o desafio histórico do país quanto às desigualdades sociais entre ricos e pobres. 

“Sabemos sobre a questão do racismo e sobre o pobre sempre ter que trabalhar para o rico. Nós só temos direito a trabalhar, não temos direito ao lazer. A nossa vida não é facilitada para irmos em algum local lá no centro do Rio ou lá na zona sul para poder ir ao teatro ou em uma feira. […] Precisamos não só trabalhar e sobreviver, mas ter acesso a um trabalho com pelo menos dois dias de descanso para que possa cuidar da sua casa e de você também. As pessoas acabam até fazendo piada sobre isso, mas a geração Z está percebendo que a vida não é só trabalho.” 

Ter acesso à cultura, a outros pontos da cidade e à possibilidade de conhecer pessoas novas com diferentes trajetórias e experiências de vida, ter acesso à saúde e à alimentação de qualidade, poder se cuidar física e mentalmente, estar junto das pessoas que gosta e fazer o que você gosta e acredita são outros aspectos citados por Maria. “Todo mundo luta de alguma forma, mas para quem está à frente da luta, se cuidar também é importante, porque não conseguimos lutar por nada se a gente não se cuida.” 

Sabrina Santos. Foto: Comunicação UNAS – Cindy Tavares

Sabrina Santos e Ana Carolina Barbosa, ambas pesquisadoras e multiplicadoras do Observatório De Olho Na Quebrada, na cidade de São Paulo, explicam que definir o Bem Viver não é tarefa fácil e nem sempre existirá um consenso sobre o termo, considerando as diferentes realidades, necessidades e desejos das pessoas. Entretanto, defendem, de forma ampla, que o Bem Viver vai além das necessidades básicas garantidas pelas políticas sociais nas favelas, como alimentação e moradia, e inclui tudo o que é essencial para uma pessoa ser saudável, sentir-se segura, relacionar-se positivamente com os outros, ser respeitada em sua identidade e fazer escolhas livres e informadas sobre seus direitos. 

“A nossa compreensão de ‘Bem Viver’ está profundamente enraizada em nossa experiência em Heliópolis, um Bairro Educador reconhecido internacionalmente. Nesse contexto, as creches, escolas, centros para crianças e adolescentes, equipamentos públicos e movimentos sociais buscam trabalhar de maneira colaborativa, desenvolvendo projetos político-pedagógicos conjuntos. Essa cooperação demonstra, ano após ano, que as favelas e comunidades urbanas são ambientes ricos em oportunidades de aprendizagem, onde acontece interações sociais, diversidade cultural, engajamento político e produção de conhecimento. Desde cedo, as crianças discutem questões como mobilidade urbana, letalidade policial, histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas, educação sexual, entre outras temáticas. Esta perspectiva contrasta fortemente com a narrativa frequentemente propagada pela grande mídia, que retrata as favelas como meros locais de extrema pobreza ou como ‘fábricas de criminosos’, que devem ser apartadas da cidade – como historicamente foram. Dessa maneira, para nós, ‘Bem Viver’ também implica em lutar para ampliar esses aspectos positivos e desmistificar as narrativas que se concentram unicamente na violência, na barbárie e na carência.” 

O caso do De Olho na Quebrada 

Assim como no caso do data_labe na Maré, a indisponibilidade de dados oficiais, que verdadeiramente retratassem a experiência e vivência dos moradores e realidade do território foi um dos principais motivos que levou a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis (UNAS) de Heliópolis, na zona Sul de São Paulo, a criar, em 2018, o Observatório De Olho Na Quebrada. A iniciativa tem como objetivo fundamentar projetos, serviços, atividades e reivindicações por políticas públicas com base em dados demográficos, econômicos, sociais e outros da população de Heliópolis. 

Ana Carolina Barbosa. Foto: Arquivo pessoal

“Essas informações, quando disponíveis, são divulgadas muitas vezes de maneira confusa, com uma linguagem técnica e complexa. Além disso, eles tendem a reforçar estigmas e preconceitos. Um exemplo disso são os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre favelas e comunidades urbanas, que até 2023 eram classificados como ‘aglomerados subnormais’, um termo que sugere irregularidade, informalidade, ilegalidade e carência”, explicam Sabrina e Ana Carolina. 

Levantamentos discrepantes 

Sabrina e Ana Carolina analisam que o próprio processo de coleta de dados em territórios vulnerabilizados não é uma tarefa fácil. Inúmeros desafios – como o acesso limitado aos serviços públicos responsáveis pelo registro de dados, como Centros de Referência de Assistência Social, Unidades Básicas de Saúde e escolas e a não consideração de passagens estreitas, becos, vielas sem nomes e casas sem numeração – contribuem para o desafio da subnotificação. 

“Um exemplo dessa discrepância está no Censo Demográfico de 2010, que indica uma população de 41.118 habitantes, distribuída em 12.105 domicílios, cobrindo uma área de 624.214,84 m². Em contrapartida, estimamos para o mesmo ano uma população de cerca de 200 mil pessoas, ocupando uma extensão de um milhão de m²”, apontam. 

O próprio Observatório afirma institucionalmente que ‘traz a visão da quebrada’. Assim, a organização é composta por jovens de diferentes idades, realidades e estágios de vida, que vivem, estudam e compartilham suas experiências em Heliópolis. 

Lá no Rio de Janeiro, Maria Ribeiro também reforça a importância da representatividade. “Uma coisa que conseguimos fazer muito bem no data_labe é conhecer as dificuldades do território e daquela população. A maioria das pessoas que trabalham no data_labe são pessoas pretas, faveladas e periféricas, então é uma coisa que temos contato desde o começo da nossa vida.” 

Sabrina e Ana Carolina vão pela mesma linha ao citar um verso dos Racionais MCs: “só quem é de lá sabe o que acontece”. “Ao longo dos anos, percebemos que nosso coletivo desenvolveu uma grande capacidade de alcançar cada uma das quebradas de Heliópolis, que apresentam características únicas em termos geográficos, históricos, culturais, tipos de habitação e atividades econômicas”, aponta a dupla. Segundo elas, isso permite, além de entender a dinâmica local, captar aspectos nem sempre observados, como a falta de sinal de internet em todo o território, sinais de trânsito apagados, ruas sem iluminação e ações truculentas da polícia em relação às festas e bailes, entre outros. “Isso resultou em diagnósticos e soluções mais legítimas, baseadas em relatos daqueles que realmente vivem aqui.” 

Ainda, Maria, conta que, em uma vivência da equipe carioca em São Paulo, conheceram ações interessantes de engajamento desenvolvidas pelo De Olho na Quebrada: para incentivar a participação política de jovens, a iniciativa disponibilizou computadores para que jovens pudessem tirar seu título de eleitor. Para divulgar, entregaram garrafas de água com a mensagem em um dos bailes funks de Heliópolis. 

Depois de ter expandido sua atuação inicial focada no direito à terra e moradia, hoje o Observatório De Olho na Quebrada visa resgatar, organizar e preservar a história de lutas e conquistas da comunidade. Para isso:

– Organiza o acervo de trabalhos que existem sobre o território;
– Produz exposições fotográficas temáticas, vídeos e documentários para a internet, envolvendo jovens e contribuindo para sua formação;
– Documenta atividades, eventos e mobilizações com fotos e vídeos. 

Protagonismo diante de urgências 

Ao passo que Guilherme cita a oportunidade de o Estado potencializar e dar escala e visibilidade a iniciativas que já acontecem nas periferias, identificadas a partir de necessidades que seus moradores e moradoras sentem na pele todos os dias, Sabrina e Ana Carolina usam exemplos práticos do que já tem sido feito em Heliópolis. 

No caso de Heliópolis, por exemplo, estratégias desenhadas junto aos moradores para combater o racismo ambiental incluem a implementação de cozinhas e hortas comunitárias, a realização de mapeamentos coletivos dos pontos de enchentes, alagamentos e inundações – não presentes nos portais de dados governamentais -, a realização de oficinas de educação climática, produções audiovisuais, ocupações culturais e, mais recentemente, a instalação dos chamados dataloggers, dispositivos que monitoram registros históricos de um ambiente, em tempo real ou a longo prazo, coletando dados primários de temperatura e umidade de diferentes tipos de habitações na favela, verificando as ilhas de calor. 

“A iniciativa dos dataloggers surgiu a partir da percepção dos próprios jovens, que exploraram os efeitos da retenção de calor do concreto e do asfalto em Heliópolis, uma área que está se tornando cada vez mais verticalizada e menos arborizada em comparação com o restante da cidade. […] Em todo o mundo, as populações tradicionais, negras, indígenas e empobrecidas são as mais afetadas pelas mudanças climáticas e as mais desproporcionalmente impactadas. Como resultado, elas também são as principais combatentes na luta por justiça ambiental e climática, transformando suas dores em lutas, dados e evidências, não apenas pela sobrevivência, mas também pela dignidade. Nesse cenário, elas se configuram como os atores ideais para o desenho de estratégias territorializadas que considerem seus contextos social, econômico, geográfico e político. Como diz Txai Suruí, “nada sobre nós, sem nós’”, defendem. 

Fique por dentro

Acesse as reportagens citadas no início desse texto:

– “Moradores de periferias morrem 15 vezes mais por eventos climáticos extremos, diz IPCC”. 

– “Estudo mostra que moradores da periferia comem mais ultraprocessados”. 

– “Saúde mental: Moradores de periferias e favelas sofrem com falta de atendimento”. 

– “Para especialista, falta de saneamento nas periferias é racismo ambiental”. 

– “Sem infraestrutura e acesso à saúde, população periférica é mais prejudicada por variações no clima”.

Acesse outras pesquisas, estudos e levantamentos:

Relatório ‘Por que eu?’, do data_labe, sobre como o racismo faz com que as pessoas negras sejam o perfil alvo das abordagens policiais. 

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