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Publicado em

07/03/2023

[ artigo ] As janelas de novos mundos

O descanso criativo depois do vendaval.

Por Nancy Cardoso, teóloga feminista, assessora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e professora visitante na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista em Angola

Danilo Quadros / Arquivo Sefras

O governo e a sociedade brasileira têm, em 2023, um árduo trabalho de recuperar a democracia e a dignidade dos povos no campo e na cidade, o que deve se expressar em políticas deixar o povo e a terra “descansarem”.

Depois de anos de enfrentamento diário e exaustão social, afetiva, pessoal e coletiva, é hora do descanso. Não o descanso de fazer nada, mas o descanso de criar condições para que povo e a terra recuperem seu fôlego, recriem as condições – materiais e simbólicas – de vida. É uma alegria ver que há muita gente boa nas equipes de governo, que vem dos processos de radicalização da democracia e dos espaços de
participação social
na criação e na execução das políticas.

A pausa, o descanso e o sossego que precisamos experimentar – tanto no corpo pessoal, como no corpo social e no corpo do mundo – precisam ser fruto de vontades coletivas, políticas desejadas e espiritualidades radicais. Essa é a tarefa para as pastorais sociais e os grupos de espiritualidade da libertação.

Não será uma concessão ou um acaso inesperado, precisamos de descanso com os significados de quebra, ruptura, fratura, como expressão política, cultural e espiritual de uma vontade coletiva, de acordos plurais das maiorias de interromper a boca dentada do capitalismo.

Nada disso precisa de Bíblia ou teologia para acontecer. Mas, nós, que fazemos esse caminho a partir da fidelidade ao Evangelho de Jesus e ao Deus dos Pobres, revisitamos nossa memória de fé e luta e encontramos uma afirmação da boa nova para o tempo que se chama hoje.

Para uma vida digna em meio aos jardins criados por Deus, é preciso ‘viver de modo sabático’. Ao se descansar, abrem-se as janelas de novos mundos, para a sociedade, a fim de se superar a espoliação de pessoas e animais.” palavras do agora saudoso biblista latinoamericano Milton Schwantes

Deus descansa não como resultado ou fim do processo criativo: o descanso é parte do processo, dinâmica essencial da criação recriando-se continuamente. Uma demarcação de tempo que recria o espaço: e Deus viu que tudo era bom. Esse tempo de descanso é o lugar da contemplação do processo
criado e em criação, é a qualidade de tempo interrompido que permite avaliar a qualidade do espaço e garantir não só seu funcionamento, mas também sua “bondade”, sua capacidade criativa de fazer o que é bom.

O sábado não serve para nada, a não ser para esse respiro vital para seguir criando. Como aponta o teólogo luterano Haroldo Reimer, “aqui se revela a noção de que a criação é o espaço de vida para todos os elementos do universo e que, além da necessidade de intervenção constante no ambiente, há a necessidade de tempos de pausa, de descanso, de ócio. Um famoso pensador judeu se expressou dizendo que o sábado da criação abre o mundo para a eternidade.” (1)

Existe uma insistência na dimensão necessária do descanso em diferentes escalas de tempo: o sábado na organização da semana e o sábado na organização do calendário ampliado na forma do ano sabático: “Também seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos; mas ao sétimo a dispensarás e deixarás descansar, para que possam comer os pobres do teu povo, e da sobra comam os animais do campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival.” (Êxodo 23:10 e 11).

O sábado é a sabedoria dos povos na relação com a terra, fruto da convivência e dos saberes da necessidade de não exaurir, não extenuar, não esgotar a capacidade recriadora: comer da terra sem devorar o mundo!

O sábado em suas diversas escalas temporais responde a dois desafios básicos: a necessidade de entender as demandas da terra e a capacidade de criar mecanismos de resolução das desigualdades sociais. Nesse sentido, os textos bíblicos precisam ser lidos a partir do chão, da terra, da agricultura e suas espiritualidades. A agricultura é parte de um conjunto de conhecimentos estabelecidos e metabolizados por grupos sociais na relação com a natureza.

Esse corpo de conhecimentos é constituído pelas formas de trabalho, de lazer, de mística, de produção de valor e de encantamento que são muito mais complexas que somente os processos de produção, distribuição e consumo.

As vontades coletivas e as políticas desejadas para esse novo tempo exigem de nós rupturas com os ciclos de doença e lucro e, também, a busca de espiritualidades radicais que afirmem os Direitos da Natureza. (2)

Reconhecer esses direitos significa passar de uma abordagem antropocêntrica a uma sociobiocêntrica com o objetivo de ampliar o entendimento de direitos humanos com novas gerações de direitos, nesse caso, os da Natureza, como parte da emancipação permanente dos povos. (3)

Como destaca Eduardo Galeano, a “Natureza tem muito a dizer, e já está na hora de nós, seus filhos, não continuarmos a nos fazer de surdos. E talvez até Deus escute o apelo que ressoa a partir deste país andino – o Equador – e acrescente um décimo primeiro mandamento que foi esquecido nas instruções que nos deu no Monte Sinai: ‘Amarás a Natureza, da qual fazes parte’.” (4)

Referências:
(1) Entrevista com Haroldo Reimer. “A terra, os pobres, os animais: uma visão ecológica da vida”
(2) Artigo de Alberto Acosta. “Por uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza. Reflexões para a ação”
(3) NACIONES UNIDAS, ASAMBLEA GENERAL, Armonía con la Naturaleza, Informe del Secretario General
(4) Artigo de Eduardo Galeano. “A natureza não é muda”

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