Publicado em
30/01/2024
Novo artigo da série Decoloniza, uma iniciativa da RCC em parceria com a Afroeducação, discute a importância de uma perspectiva decolonial sobre cabelos, em especial de mulheres negras.
Por Ivani Francisco de Oliveira*
Durante toda a história social afrodiaspórica, a população negra procurou um reencontro com as suas origens étnicas, resistindo e lutando, para não ser aniquilada social, cultural, religiosa e biologicamente. Vejo nessa resistência uma postura histórica decolonial. Faço parte de uma pequena parcela da psicologia brasileira que vem pensando e agindo concretamente para a decolonização do pensamento sobre a própria psicologia.
Decolonizar o pensamento sobre a psicologia, enquanto ciência e profissão, é equivalente a reconhecer a importância da intelectualidade e da filosofia advindas de África na composição da realidade brasileira e, logo, na compreensão dessa realidade.
Foi na encruzilhada dos percursos por mim percorridos, entre ser uma mulher negra brasileira, militante do movimento negro, psicóloga clínica e pesquisadora em Psicologia Social, que fui atravessada pelo desejo de pesquisar mulheres negras e o processo de abandono das práticas de alisamento dos seus cabelos crespos para aceitação e crescimento do cabelo com textura natural.
O tema me rondava em todos os lugares: seja na clínica, manifestado por meio do sofrimento psíquico gerado desde a infância, momento em que algumas mulheres negras vivenciam o racismo devido às experiências constantes de discriminação por conta da textura dos seus cabelos, tidos como “ruim” ou “duro”; seja pelas frequentes abordagens na rua por mulheres que gostariam de ter seus cabelos naturais e me perguntavam como fazer para ter o cabelo igual ao meu; ou, ainda, por pais que pediam orientações e sugestões de cuidados para cabelos de suas filhas ainda pequenas. Todas essas situações me alertaram para a importância de uma pesquisa sobre transição capilar na Psicologia.
Era preciso produzir conhecimento que auxiliasse o entendimento e atendimento das mulheres negras no processo de transição capilar em suas múltiplas versões e em seus múltiplos sentidos.
A psicanalista Mariléia Almeida considera que, nos momentos em que a população negra acessa os serviços de cuidado em saúde mental, “[o] espaço terapêutico ganha uma dimensão política que, […] envolve simultaneamente, de um lado, o saber-se negra e o reconhecimento dos traumas causados pelos dispositivos racistas, e, de outro, a capacidade de recriar as potencialidades”.
Como pesquisadora em Psicologia Social, meu tema de pesquisa foi exatamente um fenômeno psicológico que nomeei como Descolonização Estética e Subjetiva, processo pelo qual as pessoas negras retiram o racismo imposto a sua identidade e autoimagem, como seu tom de pele, formato de nariz e textura de cabelo, reconhece-se dotada de beleza ancestral e muda a subjetividade que sustenta a sua forma de ser, estar e se relacionar no mundo.
Contexto histórico
Diversas foram as populações de origem africana que, trazidas ao Brasil em condição de escravizadas, sofreram inúmeras violências e violações que extrapolaram as jornadas do trabalho compulsório adentrando a corporeidade e subjetividade dessas pessoas. Nilma Lino Gomes (2002) destaca a violação do corpo por meio dos cabelos. “Dentre as muitas formas de violência impostas ao escravo e à escrava estava a raspagem do cabelo. Para o africano escravizado esse ato tinha um significado singular. Ele correspondia a uma mutilação, uma vez que o cabelo, para muitas etnias africanas, era considerado uma marca de identidade e dignidade. Esse significado social do cabelo do negro atravessou o tempo, adquiriu novos contornos e continua com muita força entre os negros e as negras da atualidade” (GOMES, 2002, p. 7-8).
Para desembaraçar os fios violados por essas opressões, foi necessário analisar criticamente os padrões estéticos dominantes, como também processos políticos neles engendrados. As mulheres, após a transição capilar, passaram a sentir-se mais autênticas, com maior segurança e com a autoestima elevada. A aceitação da textura natural dos cabelos interrompe o ciclo geracional de alisamento compulsório dos cabelos crespos.
Essa quebra de padrão repercute nas gerações futuras quando a transição capilar passa a ser desejada, planejada e bem-vinda nas famílias com seus cabelos crespos, com efeitos na geração antecessora, os mais velhos, que podem passar a perceber uma possibilidade de voltar ao cabelo natural a partir da circulação de novas práticas e novos repertórios adquiridos e compartilhados pela mulher transicionada.
Em virtude de o cabelo crespo ser, reconhecidamente, um traço fenotípico de ancestralidade negra, as mulheres negras, após a transição, têm sua negritude evidenciada, independentemente do motivo para o início da transição.
O processo de busca de informações e conhecimentos sobre a textura do cabelo resulta sempre em reconhecer-se na sua condição mais natural, o que inclui se compreender posicionada no pertencimento racial.
Embora todas as mulheres estejam submetidas aos padrões de beleza impostos socialmente, tratamentos estéticos de embelezamento dos cabelos, variedade de colorações e cobrimento dos cabelos brancos, somente as mulheres negras são atingidas violentamente por esses padrões, antes mesmo de nascerem, o que as leva a serem atacadas pela imposição de padrões de beleza coloniais. Isso se dá por conta do racismo.
A violência racista oportuniza, ainda durante a gestação, manifestações de sentimentos antinegritude direcionadas ao bebê, ganhando materialidade nas expressões que manifestam desejo de que o cabelo da criança não seja crespo, que seja parecido com algum membro da família que tenha o cabelo liso ou mais próximo do liso. Essa é a especificidade da relação com os cabelos que diferencia mulheres negras de outras mulheres: elas precisam lidar com a repulsa aos seus cabelos e, por isso, são incentivadas a buscar estratégias de eliminação desse traço.
Contudo, a mulher negra não se resume ao seu cabelo. Nenhuma pessoa pode ser reduzida a ser apenas o produto de uma opressão, porém sofrem no encontro com um “outro” que a vê com as lentes obstruídas pelos efeitos do racismo, do machismo e das políticas coloniais sádicas, como bem aponta Grada Kilomba, ao elencar a invação de corpos negros pelo toque dos brancos em seus cabelos.
Mulheres negras estão se movimentando a caminho da liberdade de escolhas que passam pelo cabelo, mas que se estendem por nossos corpos, posturas e subjetividades na busca de decolonizar pensamentos.
Referências
GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. 2002. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002
OLIVEIRA, Ivani F. (2019). Versões de mulheres negras sobre a transição capilar: um estudo sobre processos de descolonização estética e subjetiva. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em: https://sapientia.pucs p. br/handle/handle/22176.
*Ivani Francisco de Oliveira é psicóloga clínica e mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora da dissertação “Versão das mulheres negras sobre transição capilar: um estudo sobre processos de descolonização estética e subjetiva”. Vice-Presidenta do Conselho Federal de Psicologia e colaboradora do Instituto Afro Amparo Saúde e do Instituto Ella Criações Educativas.
Os vestígios de violência do colonialismo e da escravatura continuam presentes na memória de pessoas outrora escravizadas e na pós memória de seus e suas descendentes.
Publicado em
12/05/2023
Nestes Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra e Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, aproveitamos para refletir sobre a importância de “decolonizar” a educação por meio de práticas que visem a equidade étnico-racial e de gênero. Por Deborah Monteiro
Publicado em
25/07/2023