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Publicado em

23/10/2023

Descolonizar desde a primeira infância

Em novo artigo da série #Decoloniza, Elisangela Rodrigues defende importância de descolonizar olhar sobre as crianças e compreender que são sujeitas de direitos

Por Elisangela Nunes Cordeiro Garcia Rodrigues

As crianças têm múltiplas linguagens, estão o tempo inteiro produzindo conhecimento e cultura. Por sua vez, a sociedade capitalista sente-se ameaçada por essa vivência “improdutiva” que exercita a humanidade, ou melhor, “ensaios de humanidade”, como dizia Milton Santos.

As crianças se tocam, se reconhecem, se movimentam, observando seu espaço e, a partir desses lugares do brincar, vão se percebendo no mundo. Onde ele começa e onde ele termina. Vão descobrindo sua história, se conectam com os fenômenos da natureza, com o passado e vivem intensamente o presente, percebendo que seus corpos têm saberes

Por que temos medo de permitir às crianças vivenciarem a liberdade? Por que não reconhecer a participação delas na sociedade? Quando uma criança fica horas à frente de uma tela, o que ela estará produzindo? A quem serve não reconhecer as crianças enquanto sujeitas de direitos?

Não podemos negar os saberes ancestrais, culturais e do corpo, que fazem parte das raízes dos nossos povos, que conectam fortemente com as crianças, especialmente no encontro livre do brincar ao se relacionarem com a natureza. “Brincando e sonhando, as crianças estão produzindo a si mesmas”, como afirma Bertaux (1979, p. 56-57).

Pisar no chão, subir em uma árvore, observar seu tronco, ouvir os trovões, comer uma fruta no pé, pescar e admirar o voo dos passarinhos são vivências que nos permitem criar elos com nossos antepassados e conexões com a natureza. Makota Valdina Pinto ressalta com sua sabedoria: “Ancestralidade pra mim é tudo o que veio antes de mim. Então, a natureza é a minha ancestralidade” (PINTO, 2017). Aprendemos, com os povos originários, a incluir os seres não humanos na roda da democracia (TIRIBA, 2018).

As brincadeiras com elementos da natureza, como tomar banho de rio ou de chuva, brincar com terra, barro, argila, folhas, gravetos e pedras, além de criar brinquedos, brincar com bolinha de gude, empinar pipa e jogar na rua estão sempre presentes nas falas de pessoas adultas, de forma nostálgica, como se as crianças atuais não conseguissem mais vivenciar momentos assim. 

Mas quando permitimos esse encontro das crianças com a natureza, percebemos o encantamento, o espaço para ser o que se deseja ser. A natureza constrói o lugar do diálogo, consigo e intergeracional, do pé no chão, do vento no rosto, do corpo banhado de terra e água, do afeto, da oralidade, da brincadeira e da alegria que nos auxilia a inventar outros corpos, outros jeitos de fazer educação, de apresentar o mundo e de olhar a vida para se enraizar.

Nesse sentido, é fundamental que a escola seja um lugar de acolher bebês e crianças com suas famílias, para compartilhar, um lugar de (re)encontros, onde circulem afeto, brincadeiras, oralidade, movimento, alegria e ancestralidade; que conecte o presente com o passado; auxilie a pensar-agir para aquém-além e junto de nossas atuais referências ocidentais; e que nos auxilie a inventar outros corpos e outros modos de vida. Pelo respeito à nossa oralidade ancestral, nossas memórias familiares vivas, que perpetuam identidades de resistência e bem-viver com a natureza que somos e habitamos, pelo direito de viver a vida que não é útil (KRENAK, 2022).

Ancestralidade é a chave para crianças pretas e indígenas se conectarem com a filosofia, a cultura e a história de forma positiva e afetuosa, para, assim, compreenderem sua própria história, no acalento da avó, nas histórias de boca, como voz de sabedoria que conta através de suas leituras de mundo.

Vivemos em uma sociedade adultocêntrica e, enquanto educadores(as) e familiares, precisamos escutar as crianças na sua diversidade de ser e estar no mundo, para que se expressem. Precisamos garantir, nas práticas pedagógicas na educação infantil, o direito de todas as crianças, entre eles o direito a serem ouvidas e a terem suas opiniões levadas em conta. Os artigos 12 e 15 da Convenção sobre os Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecem a participação enquanto um direito fundamental de crianças e adolescentes. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reconhece, em seus artigos 16 e 53, o direito de crianças e de adolescentes participarem das vidas familiar, comunitária e política. 

O movimento é olhar para as crianças como sujeitas de direitos, com direito à participação nas decisões das rotinas de casa, dos ambientes educativos, nas brincadeiras. Quando permitimos que elas escolham, sentem-se parte do contexto em que se encontram inseridas. Esse movimento de permitir a expressão, em casa e/ou na escola, é uma de(s)colonização do nosso olhar sobre as crianças. Os espaços infantis não podem ser usados para criar crianças caladas, sem movimento, com medo. 

Precisamos de(s)colonizar, emancipar, questionar e reconhecer as crianças nas suas mais diversas dimensões – cultural, social, emocional -, além de pensar em atividades e acompanhar seus momentos de descobertas, sempre observando os modos como vão se relacionando com que é proposto e com o que está a sua volta. 

As crianças são pesquisadoras incansáveis, estando sempre dispostas a descobrir o mundo, criando hipóteses o tempo inteiro sobre si e o espaço à sua volta. Incentivar a curiosidade, animar os questionamentos e encantamentos é perceber os desejos e interesses, enquanto entender essa sensibilidade das crianças é permitir o sonho, um caminhar para utopia.

Referências 

BERTAUX, D. Destinos pessoais e estrutura de classe – para uma crítica da antroponomia política. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
KRENAK, A. Caminhos para a cultura do Bem Viver. São Paulo: Cultura do Bem Viver, 2020.
PINTO, M. V. Ancestralidade. 2017. Disponível em: aqui. Acesso em 09 Out. 2023.
TIRIBA, L. Educação infantil como direito e alegria: em busca de pedagogias ecológicas, populares e libertárias. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

Elisangela Nunes (Elis Lua) é do povo Xucurus de Pesqueira – PE, brincante, educomunicadora e professora da educação infantil e do ensino médio. Especialista em Psicossociologia da Juventude e Políticas Públicas em Transtornos do Espectro Autista. Em São Paulo, atuou como educomunicadora e analista de projetos, na organização Viração Educomunicação, por 10 anos. Desde 2021, é docente no CEI Olga Benário Prestes, desenvolvendo o projeto “Enraizando para FloreSer”, que conta com o podcast “Tatu do Bem!”.

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