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28/04/2025

Do interior à capital, da área urbana à rural: a cultura pulsa no Brasil

O acesso à cultura é um direito, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal de 1988. Não diferente de outras áreas, a população precisa lutar por sua garantia. Como políticas públicas e a atuação da sociedade civil têm lidado com esse cenário?

Por Elvis Marques e Isadora Morena

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Senhor Arnaldo Pereira, de família tradicional do Fandango, em Ariri, Cananéia (SP), 2021. A simplicidade do cenário contrasta com a riqueza do momento: a música que une vizinhos e amigos, passado e futuro. Foto: Mauricio Velloso

Incrustado no sertão piauiense, mais precisamente no município Coronel José Dias, que abriga 4.250 habitantes, segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), está o Instituto Olho d’Água (IOd’A), um espaço de cultura viva, onde funciona o Atelier e Biblioteca Dona Graça e o Centro de Memórias dos Povos da Serra da Capivara, onde também são oferecidas diversas oficinas artísticas e educativas para todas as idades, como capoeira, teatro e bordado.

Existente há onze anos, o IOd’A é uma iniciativa de resistência que preserva os modos de vida ancestrais e contemporâneos dos “Filhos da Serra”, como são chamados aqueles e aquelas que vivem ao redor do Parque Nacional da Serra da Capivara.

O parque, que atualmente possui uma área de aproximadamente 130 mil hectares e abrange outros três municípios piauienses além de Coronel José Dias, foi criado em 1979 com o objetivo de proteger os vestígios arqueológicos que remontam à mais antiga presença humana na América do Sul. Por sua importância histórica, é considerado, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), um Patrimônio Cultural da Humanidade.

O IOd’A nasce da compreensão da cultura como ação política para a manutenção da memória e expressão da identidade do povo que vivia na região até o momento da criação do parque, e que resiste até hoje.

“Por trás da fundação do Instituto, tem um sonho, uma história de vida marcada pela expulsão da minha família quando o parque foi criado e o Instituto foi modelado com a vontade de contribuir com a minha comunidade após as minhas pesquisas de mestrado e doutorado”, conta Marian Rodrigues, sócia-fundadora da organização.

Marian Rodrigues, sócia-fundadora do IOd’A. Foto: Fernando Cardoso

No período de criação do Parque, muitas famílias habitavam a região e foram retiradas, via desapropriação ou mesmo expulsão, passando a viver em seu entorno. A família de Marian foi uma daquelas expulsas, e ela cresceu ouvindo dos familiares lamentos sobre como havia sido difícil ter perdido tudo e sobre a importância de viver naquela área, sobre os costumes e modos de vida no território.

Exposição de peças de arte em argila criadas pelas crianças atendidas pelo IOd’A. Foto: Divulgação

Isso despertou em Marian o desejo de entender porque o seu povo estava perdendo o direito coletivo de viver no lugar que tinha se tornado um “bem da humanidade”. Ela passou a participar ativamente das ações do parque, se tornando assistente dos arqueólogos, e foi estudar Arqueologia em Portugal, onde cursou mestrado e doutorado na área de gestão de patrimônio.

Durante a pesquisa, viu a oportunidade de estudar a história do seu povo sob uma perspectiva diferente daquela encarada pelo Estado. De acordo com Marian, as pessoas que antes viviam na área do parque não destruíam a natureza, nem faziam mal àquele patrimônio, pelo contrário, tinham colaborado historicamente com a proteção e preservação daquela região.

“Fiz muitas entrevistas com a comunidade, com pessoas de várias faixas etárias. Como conclusão, a comunidade manifestou o desejo de ter os seus modos de vida também reconhecidos como patrimônio”, declara a arqueóloga.

É desse sonho compartilhado que nasce o Instituto, “um projeto da comunidade para a comunidade, uma iniciativa local com pensamento global, porque nós queremos que nossa história também seja contada assim como a ‘história da humanidade’ do parque”, enfatiza Marian, que desde 2018 passou a ser apenas voluntária da organização para assumir a chefia do Parque Nacional da Serra da Capivara.

Atualmente, o IOd’A compõe a Rede Nacional de Escolas Livres do Governo Federal, tendo sido uma das 68 organizações da sociedade civil (OSCs) selecionadas pelo Programa Olhos d’Água – Edital Escolas Livres de Formação em Arte e Cultura para receber aporte financeiro do Ministério da Cultura (MinC) para a oferta de ações de formação continuada em arte e cultura.

Segundo a organização, o financiamento não apenas possibilitou a continuidade das atividades do IOd’A, mas também foi importante para dar visibilidade ao trabalho realizado em uma região isolada, consolidando a credibilidade da instituição perante a comunidade local e regional.

Grafiteiros da Brasilândia no Sarau da Brasa. São Paulo (SP). Foto: Sonia Bischain

Mas, afinal, o que é cultura?

Do interior do Piauí à quebrada paulista, a cultura pulsa no Brasil de forma diversa. Ela está no que e como comemos, nas formas de vestir, falar e de se expressar, nas diversas linguagens artísticas e, até mesmo, na maneira como atuamos politicamente.

“Cultura é todo o nosso modo de viver, fazer e ser. É a soma de práticas, histórias e conhecimentos que formam a identidade de um povo”, afirma Marian. Pensamento comungado por Eleilson Leite, coordenador do Programa de Cultura da Ação Educativa, organização da sociedade civil, com sede em São Paulo. Ele entende cultura como “todo modo de vida”, a forma como as pessoas se relacionam entre si e com o mundo à sua volta.

“A cultura é regida pelo campo simbólico, pelos signos, mas não é algo etéreo,
ela se materializa na realidade, se cria e se transforma a partir dos conflitos da
sociedade”,
destaca Eleilson Leite.

Eleilson Leite, coordenador do Programa de Cultura da Ação Educativa. Foto: Evensen Photography

A Ação Educativa possui 30 anos de existência e tem como uma de suas linhas de atuação os direitos da juventude. Desde sua fundação, a organização percebeu que as juventudes se organizam muito por meio de coletivos de cultura. “Logo a instituição passou a ter contato com a cultura das periferias que se expandiu a partir da primeira década do século 21. Em 2006, resolvemos criar uma área de cultura entendendo que as periferias não são só territórios de carências; há muita potência nas quebradas”, afirma Eleilson.

A partir de então, a organização criou diversas iniciativas de fomento à cultura, como a Agenda Cultural da Periferia, o Espaço Cultural Periferia no Centro, reconhecido como Ponto de Cultura desde 2010, o Encontro Estéticas das Periferias e, mais recentemente, a Câmara Periférica do Livro, rede que reúne editoras e selos editoriais periféricos, entre outros projetos.

No momento, a Ação Educativa é um Comitê de Cultura, instrumento criado pelo MinC, via Programa Nacional de Comitês de Cultura (PNCC), para desenvolver, nos estados brasileiros, atividades de mobilização social, formação em direitos e políticas culturais, apoiar a elaboração de projetos e parcerias e promover comunicação social e difusão de informações sobre políticas culturais.

Eleilson, que é também pesquisador, autor de livros sobre cultura e conselheiro da Revista Casa Comum, destaca que “no mundo contemporâneo, as identidades estão em busca de afirmação e esse posicionamento se dá muito pela cultura.”

Nesse sentido, a cultura pode ser compreendida como um movimento político de manifestação da identidade de grupos e de segmentos da sociedade. “E, portanto, uma frente de luta”, analisa o conselheiro.

Panorama sobre o acesso cultural no Brasil

O setor cultural possui um papel importante na composição do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, cerca de 3%. Isso mostra, por exemplo, que essa área movimenta e emprega mais do que a indústria automobilística. As informações compõem a publicação “Cultura em Evidência: Aprendizados para fortalecer políticas culturais no Brasil”, realizada pela organização C de Cultura em parceria com o Instituto Veredas.

A publicação destaca alguns dados e análises sobre o consumo e o acesso cultural no Brasil. Confira:

>> A educação é apontada como um fator determinante no acesso à cultura. O percentual de pessoas que acessaram atividades culturais, em um ano, cresce à medida que o período de estudo aumenta. Essa variação é maior, inclusive, no acesso a teatros, museus e concertos de música;

>> 55% das pessoas que têm nível superior frequentaram as atividades mencionadas anteriormente em um ano, enquanto 58% com nível fundamental nunca foram a nenhuma delas;

>> A desigualdade cultural se manifesta ainda conforme a renda da população: 40% das pessoas das classes D e E nunca acessaram atividades culturais;

>> Além disso, apenas cerca de 5% dos municípios oferecem uma variedade de eventos e ações culturais, equipamentos (museus, teatros, cinema e centro cultural) e destinos turísticos. Enquanto 34% apresentam diversidade apenas de grupos artísticos.

Acesse a publicação na íntegra: culturaemevidencia.com.br

Cultura em disputa

Segundo o pesquisador, a cultura tem o poder de abalar as estruturas, “às vezes para o bem, e às vezes para o mal.” Por essa razão, ela tem um potencial político muito importante e está em constante disputa.

Dessa forma, ele defende que a população vive em uma guerra cultural, “uma reação contra a liberdade na cultura, educação e ciência por parte de grupos ultraconservadores e de extrema direita.”

Como exemplo, Eleilson afirma que a ultradireita promove o “desmonte, o aparelhamento e a censura como estratégias de governo.” Nesse processo, foram desencadeadas perseguições a educadores e a artistas em todo o país, ações, segundo ele, turbinadas pelas redes sociais e pelo fundamentalismo religioso.

Eleilson ressalta que a primeira medida que o ex-presidente Jair Bolsonaro tomou, quando eleito, foi acabar com o Ministério da Cultura (MinC). E “não por acaso, a rebelião do 8 de janeiro de 2023 teve o patrimônio histórico e obras de arte como um dos alvos da ira dos golpistas.”

Políticas culturais para o território brasileiro

Com a mudança no governo federal, o Ministério da Cultura foi recriado. O setor cultural passou a aparecer nos discursos oficiais como uma força importante para a união e a reconstrução do país, lema do atual governo. [Confira uma entrevista exclusiva com a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, no Papo Reto, na página 17.]

Atividade do Comitê de Cultura de Alagoas na Festa do Meado do Quilombo Lunga, em Taquarana (AL). Foto: Vanessa Mota

Eleilson enxerga o novo período como promissor para os fazedores de cultura. Apesar de reconhecer que há problemas e desafios na implementação das políticas culturais, ele acredita que a atual gestão está no rumo certo. “Hoje, há um orçamento bilionário para fomento, proveniente da Lei Paulo Gustavo (R$ 3,8 bilhões), que tem um caráter emergencial, e é voltado quase todo para o audiovisual, e da Lei Aldir Blanc II, que garante R$ 15 bilhões em 5 anos, R$ 3 milhões por ano”, declara.

Já Célio Turino, historiador e escritor, vê com preocupação a forma com que a cultura tem sido conduzida neste momento. Ele também acredita que vivemos em uma guerra cultural e afirma que “os retrocessos culturais e políticos acontecidos no Brasil, a partir de 2013, com o avanço da extrema direita, negacionistas, brutalidades e ignorâncias, são resultados de erros na compreensão sobre a potência da cultura enquanto elemento fundamental na transformação de consciência.”

Célio foi secretário da Cidadania Cultural no MinC, entre 2004 e 2010, e o idealizador da Política Cultura Viva no Brasil, a qual integra a reconhecida iniciativa dos Pontos de Cultura. Após sua saída do Ministério, ele levou essa experiência para outros países e “hoje a Cultura Viva está presente em 19 países e é referência como política pública construída ‘de baixo para cima’”, declara.

Participação social na cultura

As conferências são instâncias de participação social em que o poder público e a sociedade civil organizada debatem e propõem diretrizes para a formulação de políticas públicas. Elas são setoriais. No caso da Cultura, foram realizadas apenas quatro conferências ao longo da história: 2006, 2010, 2014 e 2024.

Após um hiato de dez anos, a 4ª Conferência Nacional de Cultura (CNC) reuniu mais de 3 mil pessoas em Brasília, em março de 2024. Os participantes foram indicados em conferências estaduais, distritais, municipais ou intermunicipais de cultura e em conferências virtuais, mobilizadas em todo o país.

Como resultado da CNC, foi elaborado um documento que elenca 30 diretrizes para o desenvolvimento das políticas culturais no Brasil. Confira o relatório: bit.ly/RCC_12_01

Mais detalhes sobre as propostas podem ser conferidas no Papo Reto, na página 17.

“Eu aprendi com os livros, aprendi na prática, mas também com o mestre Lumumba, o Paulão, líder da favela dos eucaliptos, mestre de viola e folia de reis, com Laudelina de Campos Melo, com o TC da Tainã, com a Marquesa, presidente do sindicato das empregadas domésticas em Campinas e que sugeriu a primeira experiência do que veio a ser o embrião do conceito de Ponto de Cultura”, ressalta Célio Turino.

Folião com seu tambor. Santa Maria da Vitória (BA), 2018. Foto: Thomas Bauer

Para ele, “as políticas públicas só são sustentáveis e transformadoras quando fincadas em raízes profundas e fruto da experiência vivida e compartilhada com o povo”, o que ele não observa atualmente.

O historiador acredita, por exemplo, que a estratégia do Programa Nacional dos Comitês de Cultura é equivocada e resultou na perda de 45% dos recursos em 2024 viabilizados pela Lei Aldir Blanc II.

“Muito mais eficaz que os Comitês de Cultura, como estruturas paralelas, seria o fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura. Seguramente, assim, a cultura não estaria passando por esse retrocesso orçamentário”, opina Célio. Ele afirma que o Governo Federal deveria liderar o processo de estruturação dos sistemas estaduais e municipais de cultura com uma frente de ação e de diálogo.

Conhecendo o SNC

O Sistema Nacional de Cultura (SNC) é um modelo de gestão e promoção das políticas públicas culturais que prevê a ação conjunta entre os entes da federação – União, estados, Distrito Federal e municípios – e a sociedade.

O SNC foi criado para funcionar em um processo similar ao Sistema Único de Saúde (SUS), com um regime colaborativo, descentralizado e participativo, tendo como objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.

Pensado desde 1968, o SNC foi regulado em 2024, via aprovação no Senado Federal e sanção do presidente Lula (Lei 14.835) – depois de 12 anos de tramitação –, mas ainda apresenta diversas dificuldades para ser implementado nos estados e municípios.

Para a sua viabilidade, é preciso que todas as esferas da federação estruturem órgãos gestores da cultura; conselhos de política cultural; conferências de cultura; comissões intergestores; planos de cultura; sistemas de financiamento à cultura; sistemas de informações e indicadores culturais; programas de formação na área da cultura; e sistemas setoriais de cultura.

Saiba mais sobre o SNC:
>> bit.ly/RCC_12_02
>> bit.ly/RCC_12_03

Já Roberta Martins, socióloga, educadora, gestora cultural e atual secretária dos Comitês de Cultura do MinC, defende o programa. Segundo ela, o PNCC foi criado para abreviar a distância da população com os recursos federais para a cultura. Seu objetivo é, portanto, “facilitar o acesso das pessoas, dos grupos culturais, do conjunto da sociedade, às políticas públicas de cultura articuladas pelo Governo Federal.”

Roberta Martins. Foto: Filipe Araújo / MinC

De acordo com a secretária, “as políticas, como as da cultura, não podem reproduzir desigualdades. Os recursos não podem estar totalmente concentrados, eles precisam ser nacionalizados e precisam ser nacionalizados e democratizados.”

Conforme Roberta, o programa foi então idealizado para aproximar o MinC dos territórios, para que o ministério possa compreender como cada localidade funciona e quais são as suas demandas do ponto de vista de articulação, comunicação, formação e capacitação.

A secretária vê, nesse processo de diálogo com as comunidades e os fazedores de cultura, via PNCC, uma potencialidade para a efetivação do Sistema Nacional de Cultura, já que, para ela, sua implementação não se dará em um passe de mágica. “Um sistema articulado pressupõe o processo de escuta, de participação social, processos, portanto, democráticos que precisam ser valorizados, praticados e afirmados no nosso país”, declara.

Segundo Roberta, a “diminuição da diferença de acesso a oportunidades culturais é importante para que a gente consiga articular a sociabilidade entre nós brasileiros”, tarefa, segundo ela, essencial para o fortalecimento da democracia.

Otimista, Roberta acredita que apesar de todos os desafios, a população brasileira vem compreendendo a cultura como um direito. “A sociedade está nesse caminho, porque é pela cultura a única forma da gente sobreviver a esse mundo que se entristece.”

Para Célio, a razão de tantos retrocessos sociais e políticos no Brasil e no mundo é por conta da derrota no campo cultural, “quando se sucumbe a valores outros que não os da emancipação.” Segundo ele, “só a cultura, em sentido profundo, pode emancipar.”

** Confira os links citados na tabela: bit.ly/RCC_12_04; bit.ly/RCC_12_05; bit.ly/RCC_12_06; bit.ly/RCC_12_07; bit.ly/RCC_12_08; bit.ly/RCC_12_09; bit.ly/RCC_12_10; bit.ly/RCC_12_11.

*** Há várias outras políticas setoriais – museus, livro e leitura etc. Para conferir e saber mais, acesse: www.gov.br/cultura/pt-br

Juventude em defesa de sua cultura ancestral

Samara Borari. Foto: Coletivo Potira

“A especulação imobiliária tem afetado o acesso à nossa cultura em Alter do Chão. Tudo hoje é voltado para apresentarmos aos turistas. O turismo é importante para nós, mas com o seu crescimento, não estamos tendo mais acesso. Por exemplo, o Carimbó do Mestre, que foi criado pela gente e para a gente, hoje não temos mais acesso a esse espaço de cultura”, conta Samara Borari, ativista ambiental e comunicadora popular.

Para entender esse problema, é preciso, primeiro, voltar alguns anos, quando Samara era criança e recebeu em suas mãos uma câmera fotográfica para participar, juntamente com demais estudantes, do Projeto Escola D’Água. “Isso me despertou algo, e eu comecei a gostar muito de fazer fotos do que acontecia em meu território”, relembra.

A jovem, hoje com 23 anos, se refere à Aldeia Alter do Chão, território indígena da etnia Borari que se confunde, após o forte crescimento imobiliário, com o destino turístico homônimo, às margens do rio Tapajós, na região de Santarém (PA). O local já foi eleito pelo jornal britânico The Guardian como a praia de água doce mais bonita do mundo.

Mudança de hábitos

Em reportagem publicada em 2021, o jornal local Tapajós de Fato aborda a “gentrificação” de Alter do Chão. O termo em inglês representa, em tradução literal, um processo de elitização da área.

Na época, a indígena Ianny Borari relatou ao site de notícias que uma das principais mudanças percebidas foi a relação cultural que a sua etnia tinha com o rio: “As pessoas mais velhas costumavam utilizar a água do rio para suas atividades diárias. Sempre tomamos banho para ir à escola de manhã cedo, para lavar roupa, era cultural, porém com o aumento do fluxo de turistas, devido às praias e aos eventos culturais como o Sairé, grandes empresários abriram os olhos para a região e compraram as áreas mais privilegiadas.”

Confira a reportagem na íntegra em: bit.ly/RCC_12_12

A Terra Indígena (TI) Borari ou Aldeia Alter do Chão, conforme o Instituto Socioambiental (ISA), está na primeira etapa do processo de regularização fundiária: a de identificação. O primeiro de muitos passos para chegar ao reconhecimento definitivo da comunidade. E parte dessa problemática começou a ser registrada e divulgada por Samara.

“Eu gostava muito da fotografia, só que não conseguia mostrar, por meio dela, tudo o que acontecia no território. Conforme eu crescia e trabalhava com a juventude, falávamos dos impactos que o nosso território sofria. Foi a partir disso que a comunicação entrou na minha vida”, conta a comunicadora popular.

Além da fotografia, Samara passou a atuar com rádio e a produção de podcasts, especialmente um chamado Rio de Saberes. “A rádio é o maior veículo de comunicação que a gente tem na Amazônia. Mas quis conhecer outras formas de me comunicar. Foi quando eu comecei a gostar de gravar vídeos, sobre coisas que aconteciam no território, mas com a nossa linguagem jovem.”

Juntamente com uma amiga oriunda do Amapá, Samara buscava mostrar, em seus vídeos, as belezas e problemáticas presentes na Amazônia paraense, como a seca, o fogo e a especulação imobiliária, e como isso afetava a sua comunidade. “Eu cresci no contexto onde muitas pessoas do Sudeste vinham falar sobre a Amazônia, da minha região, principalmente, mas não falavam o que eu via diariamente.
Isso me incomodava muito.”

Esse incômodo levou a dupla de amigas a se inscrever no Festival de Cinema de Alter do Chão, o Cine Alter, em 2022, que premiaria as melhores produções que abordassem “as diversas Amazônias”, em específico a floresta paraense. O tema do curta-metragem de Samara foi “Um iPhone e um sonho”, o qual abordou o Rio-Mar, que significa Pará em Tupi-Guarani, além dos desafios enfrentados pela aldeia, a
partir de relatos dos anciãos.

Esse primeiro vídeo rendeu um prêmio de R$ 500, valor investido na compra de material para continuar e aperfeiçoar as produções. A exposição das duas jovens fez com que outras mulheres indígenas fossem ao seu encontro, no intuito de participar daquele movimento e produções, o que resultou no Coletivo Potira, um grupo de audiovisual formado por sete mulheres.

Samara e o Coletivo já planejam as próximas produções, que devem abordar a história de Alter do Chão, a partir do olhar das pessoas mais velhas, e de elementos que fazem parte da cultura de seu povo, como a “Catraia”, as canoas utilizadas pelos indígenas no rio Tapajós para os diversos afazeres diários.

A jovem explica que, até o momento, a atividade audiovisual é totalmente independente: o Coletivo realiza os filmes, inscreve em festivais e tenta a seleção em premiações para ajudar nas próximas produções, tudo sem nenhum apoio financeiro. A escrita de projetos em editais, a burocracia e a falta de oficinas são os principais entraves para o Coletivo participar dos processos seletivos.

“Nós temos muita dificuldade em escrever os projetos e, principalmente, de preencher as planilhas orçamentárias. Ficamos carentes de informações e de como fazer. Às vezes, perguntamos a uma ou outra pessoa que já participou dos editais. E quando tem os cursos de explicação dos editais, eles lotam rápido. Enquanto isso, utilizamos equipamentos emprestados pelo marido de uma das integrantes do Coletivo, como a câmera”, conta Samara.

Cultura e clima: conexão urgente e necessária

Carimbó é uma dança de roda que combina música, dança e tradição do nordeste do Pará. Belém (PA), 2019. Foto: Thomas Bauer

Para Samara – assim como para diversos povos e comunidades tradicionais – cultura, clima e meio ambiente não são questões dissociadas. Como relataram as indígenas, o crescimento imobiliário, assim como o turismo, afetam os seus modos tradicionais de vida. Um exemplo citado por ela é a fumaça dos incêndios que afetou o Círio da Conceição, em Santarém, no ano de 2024. Ou seja, o fogo desenfreado na floresta amazônica afetou uma das principais manifestações culturais e religiosas da região.

Samara sabe ainda que a poluição dos rios afeta a piracaia, que é a tradição do peixe fresco assado na folha de bananeira às margens do rio. As mudanças nos estilos de construções locais afeta o modo ancestral de como as moradas dessas populações eram construídas. “Nós, que somos moradores da Vila [de Alter do Chão] começamos a não ter mais espaço, nem para nós e nem para vivermos as nossas culturas, como o Carimbó do Mestre ou o Festival dos Botos”, analisa a jovem.

Ao encontro dos exemplos apresentados por Samara, as organizações C de Cultura, Outra Onda Conteúdo, em parceria técnica com o Instituto Veredas, lançaram a pesquisa Cultura e Clima, em 2024, com o objetivo de integrar essas duas agendas, destacando as principais evidências nacionais e internacionais que existem sobre a conexão dos temas e os caminhos e obstáculos encontrados para o desenvolvimento de políticas e programas de cultura e questões climáticas. Hoje, diante da emergência climática que assola o mundo, esse debate se torna ainda mais urgente e necessário.

Criança explora o som do tambor, simbolizando a conexão entre gerações e a continuidade das tradições. Cananéia (SP), 2024. Foto: Mauricio Velloso

Mariana Resegue, diretora executiva do C de Cultura, destaca que a organização nasceu em 2016, e começa a atuar diretamente com os(as) fazedores(as) de cultura, no interior do país ou nas periferias. Desde o princípio, segundo Mariana, a entidade busca valorizar a diversidade de expressões culturais relacionadas à riqueza, com foco em um Brasil mais justo e sustentável.

“Temos trabalhado muito nessa intersecção, da diversidade cultural e de como fortalecer e ampliar os direitos culturais, e pensando nessa conexão que a cultura tem com os territórios em que ela está inserida. É um ciclo contínuo, o bioma influencia a cultura, e vice-versa. E quando pensamos em mudanças climáticas, em transformação do território, isso também faz parte dos arranjos culturais”, explica a diretora.

A partir desse entendimento, Mariana explica que a organização tem trabalhado na lógica de valorizar a cultura como pilar fundamental para qualquer tipo de desenvolvimento sustentável que for pensado para o país. “Temos discutido sobre o tema e tentado influenciar o investimento social privado [ISP]. Estamos sistematizando novas pesquisas, sínteses e evidências sobre a área. Porque viemos de um período de grande desmonte do campo da cultura, para podermos pensar, a partir do campo de ISP, esse fortalecimento.”

Mariana defende a importância da produção de conhecimento, como os estudos Cultura em Evidência e Cultura e Clima, a partir do contexto brasileiro e da lógica do Sul Global, de modo que a população e as organizações da sociedade civil tenham instrumentos em mãos para chegar fortalecidas aos espaços de debate, especialmente na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 30, que ocorre em Belém (PA), em novembro deste ano.

A publicação Cultura e Clima identifica desafios essenciais para o campo e traça caminhos estratégicos para a construção de políticas e programas com a integração da cultura e do compromisso ambiental. Confira, a seguir, as principais evidências apresentadas no documento:

>> A arte e a cultura possuem um grande poder de mobilização social, podendo sensibilizar e engajar a sociedade na luta contra as mudanças climáticas.

>> As mudanças climáticas têm alterado a forma como as comunidades interagem com o seu território, resultando na perda de práticas culturais tradicionais e na ameaça ao patrimônio imaterial.

>> As práticas culturais de povos indígenas e comunidades tradicionais são importantíssimas na preservação da biodiversidade e no manejo sustentável dos ecossistemas, apesar de ainda sofrerem com sua baixa institucionalização em políticas e programas.

>> O contexto de mudanças climáticas demanda a construção de uma governança cultural para a agenda climática, de modo a gerir efetivamente os riscos de desastres para o patrimônio cultural e natural, além de garantir o pleno exercício dos direitos culturais.

>> Apesar de muitos artistas e organizações culturais já estarem conectados às pautas ambientais, as políticas culturais ainda não fomentam a ação climática de forma sistêmica e efetiva.

>> Na maioria dos países, é incipiente o fomento a planos e programas que integrem cultura e clima, sendo necessário o desenvolvimento de arranjos e mecanismos de financiamento para pesquisa, formação, comunicação e iniciativas que atuem nessa intersecção.

>> No âmbito do setor privado, empresas e festivais têm importante papel na conscientização e adoção de medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, mas ainda apresentam baixo engajamento efetivo nessas ações.

>> É essencial o mapeamento e o registro de aprendizados de iniciativas locais e internacionais que possam ser adaptadas aos diversos contextos brasileiros.

Conheça o estudo completo em: culturaeclima.com.br

Lideranças mundiais e a cultura

Ao fim do Encontro do G20 – o grupo que reúne as vinte maiores economias do planeta – no Rio de Janeiro (RJ) em 2024, a tão aguardada declaração final, costurada antes e durante o evento pelas relações exteriores dos países, mencionou temas como a liberdade artística e direitos trabalhistas para o setor cultural. O parágrafo 28 do documento reconhece “o poder e o valor intrínseco da cultura no fomento à solidariedade, ao diálogo, à colaboração e à cooperação, promovendo um mundo mais sustentável.”

Sobre a questão trabalhista e os direitos autorais, a declaração afirma: “tanto on-line quanto off-line, em conformidade com os marcos de direitos de propriedade intelectual e as normas internacionais de trabalho, visando à melhoria do pagamento justo e a condições de trabalho dignas.”

Durante o evento, Margareth Menezes, Ministra da Cultura, destacou que a declaração do G20 “reconhece, de forma inédita, o potencial da cultura para promover ações que atenuem os efeitos das mudanças do clima”. A informação é da Agência Gov, do governo federal.

Vale destacar que essa não é a primeira vez, nos últimos anos, que a cultura ganha destaque nos encontros com lideranças mundiais. Durante a Conferência do Clima, a COP 29, no Azerbaijão, em 2024, ocorreu o segundo encontro ministerial do Grupo de Amigos da Cultura pela Ação Climática, um movimento organizado em conjunto com o MinC.

A coalizão reúne países e entidades de diferentes partes do mundo com o objetivo de mobilizar as forças culturais na proteção de patrimônios materiais e imateriais, além de dar visibilidade a esse desafio que afeta diretamente a identidade dos povos.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), presente na última Conferência, compartilhou experiências e propôs parcerias para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas ao patrimônio cultural.

Leia o documento do G20 no Rio de Janeiro: bit.ly/RCC_12_13

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