Publicado em
23/11/2023
As mudanças climáticas propõem um desafio civilizacional. Portanto, é necessário pensar em novas formas de habitar o mundo, como a partir das perspectivas dos feminismos ecoterritoriais da América Latina.
Por Lígia Amoroso Galbiati*
As discussões climáticas ficaram muito tempo restritas ao espaço científico. A percepção de que algo estava mudando na atmosfera dependia de aparatos tecnológicos e matemáticos. Tudo muito especulativo para o grande público, e pouco palpável na realidade.
Esse cenário está mudando, mais rápido do que os próprios cientistas previram com seus modelos matemáticos. Notícias de desastres relacionados às alterações do clima da Terra são cada vez mais comuns e as variações de temperatura, inusitadas e atípicas, estão colocando em cena a emergência climática – ou “ebulição global”, de acordo com o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres.
Apesar de estarmos sentindo na pele os efeitos das mudanças do clima, no geral, não sabemos muito o que fazer com isso. O problema está delimitado como algo globalizado e desterritorializado, da ordem da ciência e de uma escala que parece ainda distante da nossa vida cotidiana, ainda que vivenciamos seus efeitos.
Esses acontecimentos vêm colocando à prova uma separação que é marcante da nossa sociedade moderna ocidental: a de que o ser humano está apartado da natureza, de que a civilização, em seu senso de superioridade, e o humano, com seu excepcionalismo, são capazes de domar a natureza e mantê-la sob controle e afastada, reclusa em espaços delimitados de manutenção para seu usufruto.
O desafio imposto pelas mudanças climáticas, portanto, é civilizacional. Precisamos pensar em novas formas de habitar esse mundo, formas-outras de nos compreender em um mundo que não existe de maneira apartada da natureza, mas sim inextricavelmente em relação a ela e como parte dela.
Proponho, então, que realizemos um exercício político imaginativo a partir das perspectivas dos feminismos ecoterritoriais da América Latina, para que novos imaginários sobre esse mundo em catástrofe possam emergir.
O que chamo aqui de feminismos ecoterritoriais são movimentos de mulheres que há muitas décadas exercem um protagonismo nas lutas sociais e de direitos humanos da América Latina e que recentemente se somaram às lutas ambientais. A socióloga, escritora e professora, Maristella Svampa¹, assim os nomeia para enfatizar o vínculo desses movimentos com o giro ecoterritorial das lutas latino-americanas.
O giro ecoterritorial está vinculado ao agravamento do neoextrativismo nesses países, o que exacerbou conflitos socioambientais na região. Como contraparte desse processo, houve um aumento nos movimentos de luta e resistência, a partir de perspectivas contra-hegemônicas, que questionam a relação sociedade-capitalismo-natureza.
Novas linguagens para pensar as questões ambientais foram elaboradas a partir dos intercâmbios entre o discurso crítico ambientalista e as matrizes indígenas-comunitárias. O valor (não no sentido monetário, mas epistemológico) do território é redefinido e passa a ser central para pensar as problemáticas socioambientais da região. E nesse contexto, os aportes de movimentos feministas e de mulheres foram fundamentais.²
Esses movimentos partem do entendimento de que só é possível enfrentar as injustiças ambientais a partir de um olhar sistêmico, que considera o entroncamento dos sistemas de opressão – de classe, raça, gênero, sexualidade – e que tenha como horizonte a subversão da lógica colonial, que hierarquiza os humanos, e humanos e não humanos.
A partir de suas lutas, elaboram noções teórico-práticas e um repertório político para defesa da água e dos territórios, por soberania alimentar e agroecologia, por soberania popular e energética, pela sustentabilidade da vida, pelo entrelaçamento e inseparabilidade entre corpos e territórios, pela necessidade de sanación (uma noção vinculada à ideia de saúde holística, que integra o material e o espiritual), pelos bem-viveres feministas.
Esses movimentos de mulheres e feministas criam espaços de re-existência e de resistência capazes de reelaborar de forma local e territorializada nosso entendimento sobre mudança climática. Aqui, não entendida mais como um processo apenas global, mas que aterrissa nos corpos e territórios de formas múltiplas e específicas. Entendem que a mudança do clima é na verdade um sintoma desse sistema-mundo colonial-racista-patriarcal, que opera na chave do desenvolvimento e do progresso como narrativa única e hegemônica de sociedade.
Ao compreender o mundo ocidental como um dos mundos possíveis, mas não o único, abre-se caminho para a elaboração de outras possibilidades de habitar este mundo, superando o catastrofismo paralisante que nos assola. Vivemos em um mundo de muitos mundos, que coexistem não pacificamente, mas onde esses mundos-outros continuam resistindo à hegemonia do mundo ocidental moderno. Que essas outras formas de existir, pautadas na ecodependência, na interdependência e em uma ética comunitária de cuidado, nos inspirem a cultivar espaços de resistência dentro de nós e nas nossas práticas políticas cotidianas
“Deixaremos mais uma vez claro que as nossas visões de mundo, modos de vida e resistências antigas e atuais são contrárias ao projeto capitalista, racista e patriarcal de morte. (…) Irá chamar-nos a cultivar irresistivelmente o amor, a harmonia, a vida, o respeito, a justiça, a bondade, a esperança, a liberdade, a paz, o equilíbrio, a dignidade, para parar as alterações climáticas, os saques, o neocolonialismo e a autodestruição. Avó do sol, avó da luz! Que venha o amanhecer, que venha o amanhecer! Com a força ancestral de Iselaca, Lempira, Mota e Etempica, as nossas vozes se elevam cheias de vida, justiça, dignidade, liberdade e paz.”
[tradução livre do espanhol] (As revoluções de Berta, 2018, p. 247)³
*Lígia Amoroso Galbiati é bióloga pela Universidade Estadual Paulista de Rio Claro (Unesp-Rio Claro), com mestrados em Zoologia, pela Unesp-Rio Claro, e em Conservação da Fauna, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Atualmente é doutoranda em Ambiente e Sociedade na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pesquisando as interfaces entre gênero e mudanças climáticas, a partir de uma perspectiva da ecologia política feminista, estudos feministas da ciência e sociologia ambiental. Atua como facilitadora do Grupo de Trabalho em Gênero e Justiça Climática do Observatório do Clima.
(1) Svampa, Maristella. Feminismos ecoterritoriales en América Latina. Entre la violencia patriarcal y extractivista y la interconexión con la naturaleza. Documentos de Trabajo, nº 59 (2ª época), Madrid, Fundación Carolina, 2021. Disponível em: bit.ly/RCC_07_59
(2) Feminismos aqui tratado no plural pelo seu caráter múltiplo e diverso. Além disso, marco a existência de movimentos de mulheres que não se reivindicam enquanto feministas, apesar de existirem convergências com os movimentos feministas.
(3) Korol, Claudia. Las revoluciones de Berta. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, América Libre, 2018. Disponível em: bit.ly/RCC_07_60
Uma vez que somos a natureza, cabe a nós cuidarmos de tudo o que a compõe
Publicado em
15/06/2023
Mulheres militantes relatam suas histórias de luta e enfrentamento de preconceitos, racismo e machismo
Publicado em
08/03/2023
Estudiosos, ativistas e defensores ambientais afirmam sobre a centralidade de um pensamento ecológico para desacelerar o contexto de emergências em razão das mudanças climáticas e o colapso ambiental.
Publicado em
23/11/2023