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15/06/2023

O direito de ser: brasileiros buscam viver as suas múltiplas diferenças e diversidades

Em um país tão violento com as suas diversidades, desistir de sonhar não é alternativa para nenhum de seus cidadãos e cidadãs.

Por Elvis Marques

O Brasil possui 208 milhões de habitantes, de acordo com a prévia do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cada uma dessas pessoas carrega consigo diferenças sociais, étnicas, raciais, religiosas, sexuais, corporais, etárias, culturais, linguísticas e tantas outras. São características que fazem parte da diversidade humana. São traços da pluralidade histórica e de povos.

A diversidade dos brasileiros e das brasileiras vai além do que o próprio IBGE pode retratar, apesar de todo o esforço nacional. São diferenças pujantes desde a cor da pele até a manifestação de fé de cada indivíduo. Danças que vão do carimbó até o anu. Canções que passam pelo funk e o rasqueado cuiabano. Comidas como arroz com pequi, cuscuz, tacacá, churrasco ou pizza. Sotaques inúmeros, da letra “r” bem “arrastada” ao “cantado”. Toda essa pluralidade nacional é celebrada em inúmeras músicas e obras literárias. O problema é quando essas diferenças são transformadas em desigualdades e viram rótulos sociais que determinam o acesso a direitos, espaços e oportunidades, ou são usadas como justificativa para violências. Quem não se lembra de algumas manchetes recentes como:

Esses são apenas alguns exemplos de casos de preconceito e de crimes noticiados dia após dia. Mas a falta de respeito às diferenças não está apenas nas capas de jornais. Isso está tão presente no cotidiano, quase que enraizado, às vezes, de maneira sutil, que se tornou visto como banal. Ela é intrínseca em pequenas ações, as quais excluem e violentam múltiplas pessoas, impedindo que tenham garantido o seu direito de ser quem se é e se quer ser, como é possível perceber nas histórias a seguir.

Conhecendo o povo brasileiro:

– 51,1% da população é composta por mulheres;
– Os homens são 48,9% dos habitantes;
– 47% dos brasileiros se declararam pardos;
– 43% dos brasileiros se declararam brancos;
– 9,1% disseram que são pretos;
– 6,7% da população (12,5 milhões de pessoas) possuem algum tipo de deficiência.
Fontes: Prévia do Censo do IBGE 2022; PNAD Contínua 2021;

*Censo do IBGE 2010.

Diversidade no campo

Em 1998, no interior do estado do Mato Grosso, no município de Terra Preta, se formava o acampamento de trabalhadores rurais sem terra, de nome semelhante à cidade. Entre as famílias que reivindicavam um pedaço de chão para morar e plantar alimentos, estava a de Dê Silva [mulher transexual, 32 anos, camponesa, pedagoga da terra, católica, militante das causas LGBTQIA+ e das lutas por terra, das águas e das florestas], a qual, naquela época, ainda não se identificava de tal forma, já que, como ela mesma diz, “esse processo foi e é uma construção social”.

Dê chegou ao Acampamento Terra Preta com a mãe, o pai e o irmão. Ela era uma criança “sem terrinha”, forma com que as crianças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) são chamadas. “As complicações da vida urbana, como o desemprego e a falta de oportunidades, nos empurraram para uma ocupação do MST.”

Marcou aquela pequena criança a Jornada dos Sem Terrinha, quando, no próprio estado, ela participou de sua primeira audiência pública com o governador. A criançada entregou sua pauta de reivindicação ao chefe do Executivo, no intuito de ter escolas no campo, estradas e transporte para levar os estudantes.

“Foi um momento histórico para mim, quando eu pude me sentir gente, ao conversar com quem dá as ordens. Essa talvez seja uma das grandezas do MST, ao fazer com que a gente deixe de ser simplesmente uma pessoa e passe a lutar por direitos e a ser sujeito da sua história”, se emociona Dê ao relembrar aquele momento.

As lutas cotidianas, formações, vida coletiva, responsabilidades compartilhadas no acampamento e a atuação junto aos jovens contribuíram para que Dê se tornasse sujeita e dona de sua história. Essas vivências foram construindo uma mulher adulta, a qual passou a se conhecer e reconhecer ao se olhar no espelho.

É daí que surge essa pessoa que eu sou hoje. Eu vou me entendendo ao ponto de sentir que aquele corpo que eu estava não condizia com a pessoa que eu era. E vou iniciando, naquele momento, o processo de transformação da pessoa que eu sou agora. Desde muito nova, eu sabia quem era, mas eu só pude me transformar na Dê Silva de hoje na passagem da adolescência para a juventude”, explica.

Como em qualquer outro espaço da sociedade, a transição de Dê Silva não seria fácil, como ela mesma reconhece. No entanto, ser uma mulher trans, acampada e integrante do MST, no interior do Mato Grosso, exigiu mais força de Dê e daqueles que a cercavam com amor. Após um longo período de vida no Centro-Oeste, ela aceitou outro desafio do movimento: se mudar para a região metropolitana de Curitiba, no Paraná, e atuar na Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA).

Foto: ELAA – Escola LatinoAmericana de Agroecologia

Redes de apoio

A luta de Dê, como de outras mulheres e homens trans, às vezes, não encontra colo e segurança em nenhum lugar, mesmo em meio aos que defendem os direitos humanos. “Não há espaço para nós na escola, nas igrejas, nem nas religiões. Ninguém quer falar sobre o assunto, e é muito mais fácil atribuir a diversidade ao pecado. Por isso, esse é um processo que a gente se vê de fato sozinha. Muitas vezes, é a gente e Deus.”

Estar inserida em organizações sociais desde criança permitiu à Dê criar uma rede de apoio e solidariedade. “Isso pode ter minimizado um pouco as situações de violência, o que não quer dizer que as pessoas LGBTQIA+ não sofram. Talvez a gente não sofra na mesma intensidade de outras pessoas da comunidade, mas isso não significa que os movimentos sociais são espaços blindados da violência e do preconceito contra as pessoas diversas.”

No MST, há pelo menos oito anos, essa temática tem ganhado relevância no planejamento estratégico e nas ações do movimento. “A partir do momento em que a gente começa a discutir uma reforma agrária popular, temos força e embasamento para trazer o debate da diversidade. Porque não se faz reforma agrária sem olhar para os sujeitos que constroem essa luta: mulheres, homens, jovens, negros, indígenas e LGBTQIA+. E se essa reforma agrária se propõe a produzir alimentos diversos e saudáveis, ela precisa respeitar a diversidade que a torna realidade”, enfatiza a educadora.

População LGBTQIA+

Os dados sobre o tamanho da comunidade LGBTQIA+ brasileira ainda são difusos, por vários motivos, conforme as fontes de pesquisas. Hostilidade, preconceito, medo ou violência dentro das famílias são algumas das motivações. Veja algumas:

– De acordo com a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, cerca de 20 milhões de pessoas (10% da população nacional) se identificam como LGBTQIA+.

– A Pesquisa do Orgulho, divulgada em setembro de 2022 pelo Instituto Datafolha, aponta que, pelo menos, 9,3% da população brasileira se identifica como LGBTQIA+. O percentual pode ser ainda maior, já que 8% não quiseram responder.

– Já os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2019, mostram que 2,9 milhões de pessoas acima de 18 anos se identificam como LGBTQIA+. Segundo a PNS, esses dados podem estar subnotificados, mas o levantamento deve ser contínuo.

Um país que mata devido às diferenças

  • Conforme dados do Fórum de Segurança Pública, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2022, sendo 62% delas negras.
  • O índice de assassinatos por 100 mil habitantes, em 2020, no país, entre negros, foi de 51, e entre os não negros, a taxa foi de 14,6, segundo estudo do Instituto Sou da Paz.
  • 85% das pessoas com obesidade já sentiram preconceito pelo excesso de peso, mostra uma pesquisa sobre obesidade e gordofobia divulgada em 2022 pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
  • Segundo o último relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país com maior número total de homicídios de pessoas travestis e transexuais. Em 2022, 131 foram mortos, tendo a maioria das vítimas entre 18 e 29 anos. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos.
  • Além disso, o Brasil continua a liderar outro ranking, o dos países que mais matam pessoas LGBTQIA+. De acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), pelo menos, 256 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros foram mortos em 2022. Segundo o GGB, ocorreram 242 homicídios e 14 suicídios ao longo do ano passado, ou seja, uma morte a cada 34 horas.
  • Divulgado em março deste ano, o relatório anual da Anistia Internacional coloca o Brasil como o quarto país do mundo, de um total de 156 pesquisados, com o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos e do meio ambiente.
  • De janeiro a junho de 2022, o Disque 100 registrou mais de 35 mil denúncias sobre algum tipo de violência contra pessoas idosas. Em mais de 87% dos casos (30.722), as violências ocorrem na casa onde o idoso reside.
  • Conforme o Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2022, de 2020 para 2021 os casos de estupro de vulnerável subiram de 43.427 para 45.994, sendo que 61,3% dos crimes foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas).

Segregação social

Mateus Fernandes é um jovem preto de 23 anos, LGBT?QIA+, periférico, favelado e umbandista, filho de Obaluaê e Iemanjá. Foi criado no Parque Santos Dumont e tem atuado em São Rafael, ambos bairros da periferia de Guarulhos, em São Paulo. Atualmente, trabalha com redes sociais, criando conteúdos sobre impacto social, juventudes, favela, política, educação e funk.

Apesar da pouca idade, o jovem acumula muita sabedoria, a qual faz questão de dividir com a sua comunidade, seja via internet seja em seu próprio território. Os mesmos cursinhos comunitários – gratuitos e mantidos pelos próprios moradores da região onde vive – ajudaram Mateus a cursar a sua primeira graduação em Recursos Humanos com foco em Psicologia Aplicada e, atualmente, além de contribuir com a formação de sua vizinhança, ele encara o segundo curso universitário, a Psicologia.

A relação entre Mateus e a educação não começou com muito amor pela área. “Quando eu tinha uns dez anos, estudava na Escola Estadual Parque Santos Dumont, conhecida como latão, por causa da estrutura de um material bem fino que parece reciclado. Lá, em 2010, ocorreu uma operação policial com uma intensa troca de tiros. Ir para a escola e não saber se a gente volta para o braço da sua mãe ou da sua avó, sendo tão novo, te gera uma consciência política acelerada. É algo muito forte.”

Quando falamos de diversidade, para mim, sempre tiveram duas realidades. Nas periferias, por exemplo, poucas vezes a gente consegue ver o diferente, porque estamos num apartheid social [um regime de segregação racial] tão grande a ponto que a gente sempre compreende que aqueles ali são os nossos semelhantes, e que não é diverso”, analisa Mateus Fernandes.

Depois desse episódio, o estudante passou a abraçar a educação com mais força, como forma de que nem ele nem outras pessoas vivenciassem novamente situações semelhantes. A diversidade, para Mateus, está no enredo e nos personagens dessa história, que pode ser verificada em múltiplas favelas ou comunidades Brasil afora.

Ao trazer essa reflexão, Mateus se lembra de uma música do grupo de rap Racionais, chamada Da ponte pra cá, a qual trata das desigualdades sociais nos grandes centros urbanos, como São Paulo. Um dos trechos da canção faz a seguinte relação: O mundo é diferente da ponte pra cá / Um Bradesco bem em frente à favela é viagem / De classe A da TAM tomando JB / Ou viajar de Blazer pró 92 DP.

Para o estudante de Psicologia, a população brasileira é formada majoritariamente por gente preta, com numerosos corpos LGBTQIA+ [diferentemente dos dados retratados pelo IBGE], e de pessoas com deficiência (PCDs). Mateus conclui: “a maioria dessas pessoas têm um endereço em comum, as periferias.”

Jovem dança durante o Festival de Música na Ceilândia, periferia do Distrito Federal, em agosto de 2018. Foto: Matheus Alves

Por que não têm corpos como o meu no poder?

O Congresso brasileiro ainda está longe de traduzir a diversidade da população. A própria Revista Casa Comum já trouxe análises sobre esse grupo de repre?sentantes do povo: hoje formado majoritariamente por homens, brancos e de meia idade.

Há exceções como Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), as primeiras mulheres trans eleitas para a Câmara dos Deputados, ou Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita deputada federal. São casos que representam muitos anos de luta para ocupar as instâncias de poder no Brasil.

Mateus Fernandes, hoje secretário da Juventude de Guarulhos (SP), enxerga que apesar de a população brasileira ser de maioria preta, isso não é traduzido em representatividade em muitos espaços. “Eu vejo que isso foi sempre um incômodo na periferia, onde as pessoas são vistas como massa de manobra, por ser um território de vulnerabilidade social. Se há uma pessoa preta e de ‘quebrada’ em ambientes de poder, ela precisará ser três vezes melhor que os seus colegas. Isso jamais aconteceria com um corpo branco.

Mateus conta que quando alguém como ele acessa um cargo público, sendo uma pessoa preta, jovem, umbandista, LGBTQIA+, acaba se colocando no papel de responsabilidade de querer o máximo possível.

“Não vou conseguir mudar o mundo, e eu tenho ciência disso. A gente pode mudar pequenos mundos. E toda a nossa atuação se baseia em vivências, e, por isso, que a gente sabe o quanto é importante, porque já vivemos o outro lado, de almejar, por exemplo, políticas públicas. Tem essa cobrança, claro, de que eu ou pessoas como eu resolvam os problemas relacionados a pautas raciais, sobre vulnerabilidade, sendo que essa discussão não envolve somente eu, ela envolve uma estrutura.”

A periferia é plural, continua Mateus, por isso quem ali vive também tem condições de assumir debates e pautas como de tecnologia, de metaverso. “Somos plurais a ponto de criar e ocupar independente do que seja o espaço e o assunto. Estou tentando buscar a representatividade que eu nunca encontrei.”

O racismo e a negação da identidade

Com 54 anos de vida e 40 de ativismo no movimento negro, Benilda Brito é CEO da Múcua Consultoria e Assessoria Interdisciplinar, consultora da Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres e Pacto Global, ativista da Rede Malala Fund (@MalalaFund no Instagram) e Movimento de Mulheres Negras N’Zinga de Minas Gerais (@NzingaColetivo no Instagram). Após décadas na luta racial, ela é enfática ao dizer: “eu ainda sou uma sobrevivente dos racismos cotidianos.”

Mineira de Belo Horizonte, Benilda é uma mulher negra, lésbica, do Axé, quilombola, neta da dona Benigna, filha da dona Zaíra, mãe do Addaê, Alayê e da Ayana, e avó do Enan Miguel.

Ao se apresentar, Benilda diz se emocionar por estar no caminho iniciado por seus ancestrais, o qual faz com que ela não perca o foco dos princípios da cosmopercepção africana, o princípio da tradição e da origem africana, de coletividade, de fraternidade, irmandade. “E, além disso, me emociono por ter uma grande responsabilidade, de pensar quantos de nós são tão violentados nesses caminhos e não têm a oportunidade de se assumirem como eu fiz, por vergonha ou receio da violência vinda do racismo”, comenta.

A gente costuma dizer que a maior violência do racismo é a negação da nossa identidade, por isso, a afirmação da nossa identidade é a melhor forma de enfrentamento ao racismo”, afirma Benilda.

A avó Benigna, relembra a pedagoga Benilda, a ensinou desde pequena que ser uma menina, preta e pobre faria muita diferença a ela, por exemplo, no acesso a direitos.

A pobreza era suprida pelo amor e o empoderamento para que, cinco décadas depois, Benilda continue a lutar contra o racismo, seja em seu território ou em Nova York, durante a 67ª sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW), o maior encontro anual da ONU sobre igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, realizada em março deste ano.

Racismo e violência do Estado ainda assolam a população negra 133 anos depois da Abolição. Foto: Carl de Souza / AFP

A diversidade que não é minoria

O Brasil é o segundo país de maior população negra, perdendo apenas para a Nigéria, situada no continente africano. “Quer dizer, se estamos em segundo lugar apenas, nós somos muitos. Mas se o dominador aqui é o branco, que é minoria em termos quantitativos, dar visibilidade a isso significaria empoderar uma grande maioria que é tratada como minoria em falta de acessos e de direitos”, aponta Benilda.

A pedagoga relembra um censo demográfico, realizado na década de 1970, que apresentou 129 tipos de cores para as pessoas não dizerem que eram negras. Antes, a pesquisa era aberta e trazia a questão: qual é a sua cor? “O que as pessoas diziam, os pesquisadores anotavam, e surgem algumas aberrações em termos de cor, como café dormido, azul bebê, pardo, café com leite, marrom bombom. Isso ocorre porque ninguém queria dizer que é preto, pois, culturalmente, tudo que é da cor preta é ruim. E o colorismo, como vimos nessa pesquisa, vem para nos confundir.” Nesse sentido, Benilda traz algumas expressões racistas que deveriam ser excluídas do vocabulário popular:

1. Desemprego: a coisa está preta;
2. Ações ilegais: mercado negro;
3. Algo malfeito: serviço de preto;
4. Difamar: denegrir;
5. Inveja boa: inveja branca.

Tanto a questão das várias cores apresentadas no antigo censo nacional quanto a associação do negro a algo ruim são elementos e situações criadas para desunir a população negra, como ocorreu no período da escravidão. “Nos navios negreiros, misturavam os povos, as línguas, as culturas, para que as pessoas não se comunicassem e lutassem contra o que estava ocorrendo. E essa é uma estratégia de dominação até hoje”, observa Benilda.

Para a ativista, seria “lindo” se ela pudesse dizer, ao se apresentar, apenas o seu nome e que é uma mulher, no entanto, dizer tudo que ela é, uma mulher preta, de Axé etc., é necessário para se afirmar politicamente de qual lugar ela está falando. “Quando eu assumo, com o meu corpo negro, a minha identidade e as lutas que eu carrego, isso é uma afirmação política, e é muito libertador. Isso, ao mesmo tempo que me empodera, me vulnerabiliza muito mais, ao expor quem sou.”

Benilda faz referência, durante a entrevista para a Revista Casa Comum, à Audre Lorde, intelectual negra norte-americana: “O silêncio não nos salva. As interseccionalidades que eu trago, pioram a minha condição, mas o silêncio não vai me salvar, então eu já afirmo politicamente a minha identidade.”

Apesar de inúmeros desafios, como os números de violência e casos de injustiças contra o povo negro, Benilda acredita que está ficando cada vez mais difícil silenciar vozes como a dela ou de entregadores de aplicativos discriminados dia após dia enquanto trabalham.

“Ainda que a violência venha e a gente esteja cansado de lutar, desistir não é uma alternativa de nenhuma das identidades e diversidades. Temos um legado cada dia maior de pessoas inconformadas, inquietas e buscando os seus direitos. Quando eu vejo uma pessoa branca antirracista, eu acho extremamemente importante que ela diga e exponha qual o seu lugar no enfretamento ao racismo, algo que há alguns anos não víamos.”

De olhos nas injustiças

A pesquisa Nós e as Desigualdades 2022, realizada pela Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Datafolha, traz percepções da sociedade brasileira em relação às desigualdades e defende uma ação prioritária do Estado para a redução da distância entre os mais ricos e os mais pobres.

Confira alguns números:
– 79% dos entrevistados concordam que a Justiça é mais dura com pessoas negras;
– 85% afirmam que o progresso no Brasil está condicionado à redução da desigualdade entre pobres e ricos;
– 75% acreditam que a cor da pele influencia a contratação por empresas no Brasil;
– E 56% concordam com o aumento dos impostos para todos no país para financiar políticas sociais.

Tipificação de crimes contra as diversidades

Apesar de a Constituição Federal do Brasil determinar que a lei deve punir qualquer discriminação que atente contra os direitos e liberdades fundamentais, há vários crimes contra diversas populações que ainda não encontram abrigo no Código Penal. A exemplo disso, múltiplas organizações da sociedade civil lutam, há décadas, para que as violências e violações contra as pessoas sejam punidas. Confira alguns avanços:

Racismo e injúria racial: a Lei 14.532, de 2023 tipifica como crime de racismo a injúria racial, com a pena aumentada de um a três anos para de dois a cinco anos de prisão. Enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

Xenofobia: essa palavra, de origem grega, remete à união de “xeno” – que significa estrangeiro – e “fobia” – que quer dizer medo ou aversão. A xenofobia pode ser descrita como um “racismo regional”, quando uma pessoa ou um grupo é atacado por causa de sua origem, seja ela de determinada cidade, estado ou país.

Homofobia: ainda que não haja uma lei específica que trate sobre crimes contra a população LGBTQIA+, desde 2019, a homofobia é considerada crime após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Na leitura da suprema corte, a homofobia agrega os crimes cometidos contra toda a comunidade LGBTQIA+. A pena é de dois a cinco anos de reclusão.

Pessoas com Deficiência (PCDs): a discriminação de uma pessoa por motivo de deficiência é uma das formas de discriminação baseadas no corpo das pessoas, assim como os crimes que envolvem sexulidade, gênero ou raça. É considerada discriminação toda forma de distinção, restrição ou exclusão que prejudique, impeça ou anule direitos e liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, conforme a Lei 13.146/2015.

Estatuto da Pessoa Idosa: criada em outubro de 2003, a Lei 10.741 assegura desde a gratuidade de medicamentos ao transporte público, e traz medidas de proteção às pessoas acima de 60 anos. A violência física, econômica ou psicológica contra a pessoa idosa é crime, e pode ser denunciada pelo Disque 100 ou pelo Whatsapp (61) 99656-5008.

É tempo de esperançar!

Com a palavra, Benilda Brito: “Um dos grandes enfrenta?mentos ao racismo é crescer a consciência negra e dizer?mos que somos muitos. E eu estou muito feliz com o atual momento que vivemos. Em termos de políticas públicas e acesso a direitos, nós estamos muito atrasados. Mas eu fico alegre por ver o quanto a identidade e a consciência negra têm crescido em nosso país. Quando eu vejo essa moçada jovem, de cabelo black, carregando essas coroas na cabeça, usando dreads e roupas com estampa africana, fazendo sarau, pesquisando na universidade sobre o movimento negro, filmando alguma violência racial nas ruas e denunciando nas redes sociais, eu fico extremamente feliz, porque isso tudo é resultado da luta do movimento negro.”

A felicidade relatada por Benilda contrasta com o período em que ela entrou nas organizações negras. “A gente utilizava um botton no peito que dizia ‘negro é lindo’. Precisamos nos convencer de que éramos [e somos] gente. E hoje não precisamos usar mais isso, está na cara. Estou convencida que é o afeto que vai nos salvar”, finaliza a militante, com um largo sorriso.

Com a palavra, Dê Silva: “Não podemos nos esquecer que há ainda uma onda fascista no Brasil, a principal promotora das violências e violações de direitos contra as pessoas diversas, negros, indígenas, povos do campo, LGBTQIA+, mulheres, migrantes. Penso que os movimentos sociais, a sociedade civil e setores das igrejas precisam se unir mais em torno de ações convergentes, como os valores humanistas, como a solidariedade tão exercitada durante a pandemia de Covid-19, quando o MST, por exemplo, contribuiu com a doação de alimentos às pessoas que necessitavam.”

Para a educadora popular, a sociedade civil e os movimentos populares têm contribuído para que o país “dê passos curtos, mas firmes” rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. “Falar da diversidade é falar da configuração do nosso país, e é inadmissível que não haja respeito às diversidades. Tenho ouvido muito a questão: ‘eu não aceito a pessoa assim’. Quero dizer que com relação à diversidade, ninguém precisa aceitar nada, só respeitar. Pois, embora seja diversa, essa pessoa também é cumpridora dos seus deveres e direitos.”

Dê frisa que denúncias precisam ser feitas sempre que um direito for violado e uma violência for sofrida, mas que é necessário anunciar as “boas novas”. “Cristo nos convoca para a construção de uma nova sociedade. E a Casa Comum, como diz o papa Francisco, é para todos e todas, não há escolhidos. E cuidar da Casa Comum é cuidar de todas as pessoas, sejam elas mulheres, homens, jovens, crianças, negros, remanescentes quilombolas, LGBTQIA+, sem terra. O povo brasileiro e do mundo é diverso e ele precisa ser cuidado.”

VOZES EM AÇÃO
Por Bárbara Poerner, da Escola de Ativismo

Ana Claudino usa a internet para falar sobre sua vivência no ativismo LGBTQIA+

Ana Claudino encontrou no ativismo LGBTQIA+ uma forma de falar sobre seu corpo político. Por meio da internet, a publicitária e criadora de conteúdo compartilha suas experiências e visões de mundo enquanto mulher lésbica e negra – uma parte da comunidade que ainda é, em muitos casos, invisibilizada nas discussões sobre gênero e raça. Mas, para Ana, isso foi uma motivação.

Sempre vi que a comunicação podia ser usada como ferramenta de transformação social. Então, entrei
pra esse lado ativista. Em 2017, decidi montar meu canal no YouTube, o Sapatão Amiga pra falar das
minhas vivências enquanto lésbica negra, porque, até então, eu não via lésbicas negras falando sobre isso
[na internet]”, conta a carioca nascida e criada no subúrbio do Rio de Janeiro.

Embora seu canal tenha cinco anos, a luta pela causa já ocu?pa sua vida há quase dez. Ana conta que começou o envolvimento com o ativismo LGBTQIA+ em 2014, quando passou a estudar sobre feminismo, questões raciais e questões de classe. “Até então, eu não tinha acesso a essas coisas”. Seus vídeos no YouTube e Instagram falam sobre construções de novas narrativas, saúde mental, sexualidade, vida acadêmica, gênero e raça, mas também produz materiais sobre segurança digital e ciberativismo e realiza projetos variados. Ana escreveu, por exemplo, a quarta capa do livro Sou Sua Irmã, de Audre Lorde, lançado pela Ubu Editora em 2020.

Se reconhecer enquanto mulher negra da comunidade LGBTQIA+ fez toda a diferença para a construção de sujeito social da criadora. “Fui me percebendo um corpo negro lésbico na sociedade. Então, teoricamente e, também, na prática, isso já me coloca como corpo político”, explica ela, que recentemente concluiu o mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Mas se ver como ativista, no entanto, foi algo orgânico. “Eu acho que o ativismo não tem um plano de carreira, ele acontece. Ou você é a pessoa que está vivendo na violência estrutural ou quer se aliar a uma causa. O ativismo vem de uma fonte de indignação, e depois acaba sendo esperança e união, porque você não milita sozinho”, compartilha.

Libras na Quebrada: paulista cria projeto que leva língua brasileira de sinais para as periferias de São Paulo

Era 2009, quando Gyanny Vilanova, que trabalhava na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, teve a curiosidade de aprender Libras (Língua Brasileira de Sinais) para poder se comunicar com seus clientes surdos à época.

Visionária, ela logo percebeu que precisava disseminar seu conhecimento sobre o assunto para mais pessoas. Essa foi sua motivação inicial para criar o projeto Libras na Quebrada.

Surgiu com a ideia de juntar a necessidade das pessoas de aprenderem Libras, mas dentro da realidade da periferia, onde muitas não têm condição de pagar um curso. O objetivo é levar a língua até a periferia, para saberem o que é e ter a oportunidade de aprender. A Libras precisa chegar em todos os territórios”, acredita Gyanny.

A iniciativa começou em 2020 e, com a pandemia, foi condicionada a realizar as aulas e encontros de forma remota. Hoje, o Libras na Quebrada atua de forma presencial e conta com voluntários surdos e ouvintes, realizando oficinas em alguns pontos da capital paulista.

Gyanny diz que não se considera necessariamente uma ativista, mas sim uma parceira e aliada da comunidade surda. “Uso meu privilégio ouvinte para encaixar os surdos nos centros culturais como professores, por exemplo. Eu saio da linha de representatividade do projeto e chamo a comunidade surda para se expor. A causa é deles, eu estou junto com eles, e se todos os ouvintes pensassem assim, teríamos menos barreiras, menos preconceito e mais pessoas aprendendo Libras.”

A Libras foi oficializada como Língua Brasileira de Sinais e a segunda língua nacional há pouco mais de 20 anos, em 2002. Antes disso, contudo, falar com gestos corporais era proibido em muitos espaços no Brasil e, até hoje, a comuni?dade surda luta para garantir acessibilidade e respeito.

A professora defende que a Libras poderia se tornar mais acessível não só com políticas públicas eficientes, mas também com ações individuais e coletivas do cotidiano. “Com cada vez mais pessoas aprendendo um pouco, já conseguimos nos comunicar com os surdos. Então, se tor?na acessível a partir do momento que aceitamos o surdo e entendemos seu mundo”, finaliza

Aulas de Libras no Sarau Segunda Negra

O projeto Libras na Quebrada está toda segunda-feira, das 20h às 21h, no Espaço Cultural Libertário Fofão Rock’n Bar para uma aula gratuita de libras para a comunidade. O objetivo da iniciativa é promover o primeiro contato dos frequentadores do espaço cultural com a língua de sinais, interagindo e aprendendo com a comunidade surda por meio de dinâmicas, brincadeiras, música e datilologia (comunicação através de sinais feitos com os dedos). Após a aula, aconteceu o Sarau Segunda Negra.

Local: Espaço Cultural Libertário Fofão Rock’n Bar
Endereço: Estrada Das Taipas, nº 3827, Jardim Alvina São Paulo – SP

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