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Publicado em

25/02/2025

Colonialismo moderno: como a exploração do Sul Global promove a riqueza extrema no Norte Global e aprofunda desigualdades 

Oxfam estima pelo menos cinco trilionários no mundo na próxima década. Novo relatório da organização aponta que o 1% mais rico do Norte Global extraiu 30 milhões de dólares por hora do Sul Global em 2023.

Por Maria Victória Oliveira

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Diante de tanta pobreza, violações de direitos e desigualdades que marcam a vida de literalmente milhões de pessoas, quantificar a fortuna dos bilionários do mundo pode parecer uma tarefa que foge da realidade e do senso comum. Aqui vai um dado que pode ajudar – ou piorar – essa missão: se você fosse um dos primeiros seres humanos, há 315.000 anos atrás, guardando 1.000 dólares por dia, ainda assim não conseguiria ter a mesma quantidade de dinheiro que um dos dez bilionários mais ricos do mundo atualmente. 

Essa é apenas uma das muitas informações trazidas pelo relatório As custas de quem? A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo, iniciativa da Oxfam Internacional. 

O levantamento, lançado por ocasião do Fórum Econômico Mundial de 2025, realizado em janeiro em Davos, na Suíça, aponta, por exemplo, que a riqueza dos bilionários aumentou três vezes mais rápido em 2024 do que em 2023. No ano passado, a Oxfam previu um trilionário em uma década. Agora, com as mudanças no cenário internacional, a organização estima que haverá pelo menos cinco trilionários em dez anos. Ao mesmo tempo, o relatório traz o parecer do Banco Mundial, que analisa que o número de pessoas que vivem na pobreza praticamente não mudou desde 1990. 

Em entrevista à Revista Casa Comum, Carolina Gonçalves, advogada e coordenadora de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, explica que trata-se de um estudo sobre as relações de exploração historicamente construídas entre Norte e Sul Global. O relatório aponta, por exemplo, que o 1% mais rico do Norte Global extraiu 30 milhões de dólares por hora do Sul Global em 2023.

Confira a seguir a entrevista com a advogada, assim como quadros destaque com algumas das principais informações trazidas pelo estudo. 

Revista Casa Comum: Qual é o principal objetivo do relatório? 

Carolina Gonçalves: Esse é um relatório que sai todo ano, como parte das ações e atividades que antecedem a reunião de Davos do Fórum Econômico Mundial. Ele sempre é temático e visa iluminar um espectro, uma dimensão das desigualdades globais que são multifatoriais e multidimensionais. Esse ano, o foco foi compreender e iluminar um debate sobre as raízes da desigualdade com ênfase entre o Norte e o Sul Global, mas também como essas desigualdades se dão dentro dos países e como estão atreladas à colonização. Estamos falando de duas perspectivas da desigualdade, que não são mero acaso, entre Norte e Sul Global e internas nos países. Esse relatório desnaturaliza a concentração de riqueza dos países do Norte Global e a extrema pobreza, majoritariamente, que se apresenta no Sul Global.

Revista Casa Comum: No início do relatório, há uma reflexão que aconteceu na Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, sobre uma roupagem moderna do colonialismo. O que seria isso?

Carolina: A gente pode dividir o colonialismo em dois momentos. Um momento, que teria sido finalizado, sobretudo logo após ao fim da Segunda Guerra Mundial, que é um colonialismo, digamos, com toda uma roupagem formalizada. E nós podemos tratar também de um colonialismo mais informal, contemporâneo, em que não existe necessariamente de maneira expressa, visível e indiscutível, uma extração das riquezas das colônias por uma metrópole, mas um colonialismo travestido de acordos econômicos, de uma governança econômica que são visivelmente desequilibradas. Então, é nesse sentido de um colonialismo que tem os mesmos efeitos e caminhos idênticos, mas não se mostra visível como o colonialismo anterior.

O colonialismo é um fenômeno histórico e moderno. O colonialismo histórico é o período de ocupação e dominação formal pelos países ricos que, em grande parte, chegou ao fim com as lutas de libertação nacional travadas nas décadas após a Segunda Guerra Mundial. O colonialismo moderno (também conhecido como neocolonialismo) é o nome que usamos para abranger as formas mais informais pelas quais os países ricos do Norte Global continuam a exercer poder e controle sobre os países do Sul Global, perpetuando os impactos do colonialismo formal e as práticas e ideias por trás dele.

Revista Casa Comum: Como explicar que o colonialismo moderno de fato existe e é um assunto de interesse de todos nós? Como a temática se relaciona com o dia a dia?

Carolina: Uma das informações mais relevantes do relatório que tem uma conexão direta com o nosso dia a dia e com a realidade atual do Brasil, é toda a abordagem que é construída para desmistificar a ideia de mérito pessoal. O relatório retrata como estruturas socioeconômicas que vem desde o colonialismo sofrem mutações, mas não perdem a sua essência e mantém uma sociedade racialmente e sexualmente estruturada, onde uns são beneficiados com o acúmulo de riqueza e patrimônio, e outros são condenados a uma situação de miserabilidade e pobreza. O relatório chama a atenção para o fato de que grande parte da riqueza e do acúmulo do patrimônio – sobretudo da extrema riqueza no mundo hoje – é fruto de processos que retomam o colonialismo e, dentre eles, a herança. A maioria dos bilionários do mundo, sobretudo os que têm menos de 30 anos, são herdeiros. Isso vem um processo histórico de acúmulo de patrimônio, que se dá em virtude de uma estrutura política e econômica que favorece esse acúmulo.

Então, aquela ideia do ‘trabalhe enquanto eles dormem’ não vai, necessariamente, proporcionar que as pessoas ascendam socialmente, mas sim um conjunto de características e de relações interpessoais. Esse também é um ponto importante: não é só o que você herda em termos de capital socioeconômico, mas o que você herda em termos de capital político por ter determinado sobrenome, por nascer em determinada família, frequentar determinados círculos. Quantas portas isso abre para a perpetuação do patrimônio e concentração da renda e riqueza?

A maior parte da riqueza dos bilionários é tomada, não conquistada – 60% vem de herança, favoritismo e corrupção ou poder de monopólio.

Revista Casa Comum: Queria que você comentasse sobre a importância de o relatório fazer uma análise da própria formação e dos poderes de instituições globais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e como eles interferem nesse chamado colonialismo moderno. 

Carolina: Essa pergunta explica como esse colonialismo atual se estrutura. Nós temos toda uma arquitetura de organizações internacionais importantes, sobretudo financeiras, como OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], FMI, que têm uma forma de operar e uma governança que coloca a maior parte do poder de decisão sobre como fazer os negócios internacionalmente nos países mais ricos, que não são os países com a maior parte da população global, isso é um ponto importante. Ou seja, esse poder de decisão não reflete o número da sua população. Então, não é porque tem mais pessoas no Norte Global, numa ideia de uma representatividade, que lembra algo de uma democracia. Não é isso. Esses países, por terem mais poder econômico, por concentrarem, inclusive, o maior número de pessoas mais ricas e bilionárias, são os que vão decidir, em última instância, como se dão as regras para operar essa economia internacional. Então, são os ganhadores fazendo as regras do próprio jogo.

TRÊS FATOS SOBRE OS DEZ HOMENS MAIS RICOS DO MUNDO

1. A riqueza de cada um dos dez homens mais ricos do mundo cresceu, em média, quase US$ 100 milhões por dia em 2024.

2. Se você fosse um dos primeiros seres humanos, há 315.000 anos atrás, guardando US$ 1.000 por dia, ainda assim não conseguiria ter a mesma quantidade de dinheiro que um dos dez bilionários mais ricos.

3. Se qualquer um dos 10 bilionários mais ricos perdesse 99% de sua riqueza, ele ainda seria bilionário.

Revista Casa Comum: Muito se fala, ao longo do relatório, sobre o fato de que países de baixa e média renda gastam 48% em média de seus orçamentos para pagar dívidas. Na primeira missa deste ano, o Papa Francisco pediu perdão da dívida de países pobres. Essa é uma medida que ajudaria significativamente na redução de desigualdades? 

Carolina: É importante ressaltar que a construção histórica das dívidas entre os países está muito atrelada à colonização e, especialmente, a escravidão. O Haiti até hoje amarga as dívidas pela sua independência, que teve que pagar à coroa francesa. Existe uma conexão histórica, que o relatório inclusive aponta, entre as dívidas dos países, sobretudo das ex-colônias e as suas ex-metrópoles, então, reforçando essa conexão entre o passado e o presente, entre a exploração do sul pelo Norte Global. E sim, a revisão ou perdão das dívidas é um passo importantíssimo para que os países do Sul Global, a um só tempo, tenham tanto mais autonomia e soberania financeira da sua política econômica fiscal, mas também para que possam alterar essa balança que é extremamente desfavorável no espaço e no poder de tomada de decisões entre Norte e Sul Global. 

Dos US$ 64,82 trilhões extraídos da Índia pelo Reino Unido durante um século de colonialismo, US$ 33,8 trilhões foram para os 10% mais ricos; isso seria suficiente para cobrir Londres com notas de 50 libras quase quatro vezes.

Revista Casa Comum: O que explica o fato de que quatro em cada cinco países reduziram a parcela de seus orçamentos destinada à educação, à saúde e/ou à proteção social? Por que estamos, enquanto planeta, ‘caminhando para trás’? 

Carolina: O que acontece hoje é que países do norte manejam as normas sobre as dívidas públicas, e impõem, muitas vezes, políticas de austeridade, ou seja, redução do orçamento para direitos sociais – como saúde, educação e previdência -, e impõem políticas de privatização. São transferências de recursos e empréstimos que mantém o Sul Global, essas pequenas e médias economias em desenvolvimento, numa condição de subalternidade.

Essa é uma ideia, inclusive, há muito combatida por economistas muito sérios, de que reduzir orçamento e investimento em políticas públicas, e aqui estou falando de saúde, educação, mas também de tecnologia, inovação e de ciência, seria um caminho para um reequilíbrio fiscal, que é, como eu disse, muitas vezes imposto por países e organismos internacionais financeiros que vão fazer um empréstimo. Essa perspectiva de redução é uma ideia extremamente falaciosa, porque, na verdade, o papel do Estado é exatamente o fomento da sua economia. Essa lógica invertida nos aprisiona tanto no sentido econômico, de manter o país na subalternidade, como no sentido de Índice de Desenvolvimento Humano, de qualidade para os cidadãos de determinadas nações.

Revista Casa Comum: Quais são os possíveis caminhos em direção a um mundo menos desigual? 

Carolina: Um ponto importante que o próprio relatório faz é descortinar e iluminar essa realidade. A gente só consegue realmente transformar aquilo que a gente conhece. Eu acredito que esse é um ponto importante mesmo, sobretudo no momento em que vivemos, em que há muitas disputas e informações inverídicas. Comunicar com seriedade, como o documento faz, é parte do processo de transformação. Além disso, nós temos vários pontos, e eu vou destacar dois. Uma reforma real da governança global, ou seja, que tenhamos, sim, organismos multilaterais financeiros, mas que o Sul Global sente à mesa, de fato, para tomar decisões sobre o seu futuro e participar de maneira igualitária das negociações e dos debates sobre a economia globalizada. Não faz sentido que só alguns poucos tenham o poder de decidir os rumos da política econômica internacional.

E um outro ponto extremamente importante é a reforma da tributação global internacional. Hoje, nós temos diversos países que são verdadeiros paraísos fiscais. Países do Norte investem no Sul Global, sobretudo porque contam com uma ampla gama de isenções, subsídios e desonerações. Esses fluxos financeiros intensos que não são tributados retiram recursos dos países do Sul Global.

Então, teriam outros, mas pra gente ser bem realista, esses são dois pontos extremamente importantes e ressalto pontos que têm sido debatidos internacionalmente e pontos em que o Brasil tem se destacado, inclusive, como líder, a exemplo da discussão que foi fomentada no ano passado, o Brasil enquanto presidente do G20, sobre a tributação das grandes fortunas, para ali realmente tentar diminuir esse abismo de desequilíbrio que existe hoje.

Revista Casa Comum: Quais são alguns entraves para que esse debate seja realizado em diferentes âmbitos pela população? 

Carolina: Eu acho que existe uma dificuldade, muitas vezes, de acessar esse tipo de conteúdo e esses espaços de conteúdo mais confiáveis. Também acredito que há um distanciamento da própria linguagem em virtude de termos técnicos. Mas, para mim também há, e eu sempre digo isso, que existe no Brasil um certo projeto político que coloca esses temas que envolvem um pouco mais de complexidade como sendo inacessíveis para a população, porque são difíceis demais. Acho que as pessoas gostariam de saber mais sobre o tema. Inclusive esse é muito o papel da Oxfam, de tentar sempre comunicar com diversos públicos, ampliando a forma, os caminhos e os espaços de comunicação.

Revista Casa Comum: Falta de interesse por parte de governos e instituições do Norte Global em mudar esse contexto de concentração de poder de decisão?

Carolina: O relatório foi publicado no mesmo dia em que Donald Trump toma posse [como presidente dos Estados Unidos]. E o relatório cita os maiores bilionários do mundo. E na posse, há uma foto na Casa Branca, não por coincidência, com os nomes que constam no relatório. Grande parte do grupo de 1% do mundo que detém 44% da riqueza global estava naquela ação extremamente solene de um estado que é a maior economia do mundo hoje. Existe uma relação indiscutível atualmente entre poder econômico, poder comunicacional, poder de mídia e estado. Então como é que esses grandes impérios, atrelados a grandes impérios econômicos, vão aceitar de bom grado sentar para desfazer essas relações que são visivelmente e historicamente desequilibradas, desiguais, que lhes beneficiam? Esse é um ponto importante: essas relações são mantidas dessa forma porque elas beneficiam quem pode sentar à mesa nesses espaços extremamente restritos.

A eleição de Donald Trump como presidente dos EUA em novembro de 2024 deu um enorme impulso adicional às fortunas dos bilionários, enquanto suas políticas são preparadas para fomentar ainda mais as desigualdades.

Revista Casa Comum: É possível mudar essa mentalidade de séculos apontada pelo relatório: a riqueza do Sul Global direcionada para o Norte Global?

Carolina: Eu sou otimista, esperançosa. Acredito na transformação social, acredito, sobretudo, no papel da comunicação e que existem pessoas que estão trabalhando cotidianamente para essa transformação. Inclusive é o que a gente faz na organização todos os dias. 

Acho que é indiscutível que a nossa oposição é a uma mega estrutura, com muito recurso econômico e poder político, mas a transformação é possível. Ela tanto é possível que o fato de haver essa tensão, essa contradição, essa oposição, faz com que quem está se beneficiando dessa estrutura desigual, também se reequilibre para fazer frente.

Não é uma batalha, na minha perspectiva, que está totalmente vencida e sem risco. Se fosse assim, não haveria tanto protecionismo dos que estão atualmente surfando na onda da bonança da desigualdade. Por quê? Porque sempre tem grupos que, historicamente, inclusive, fazem frente e se colocam como resistência a esse movimento de exploração. Sempre houve resistência ao colonialismo e escravidão, inclusive no Brasil. Nós temos diversos movimentos, revoluções, movimentos de oposição. Então, a colonização no passado e também no presente com a sua configuração, não é um mecanismo livre de resistência da sociedade como um todo. Isso é uma coisa super potente e super importante, porque senão a gente realmente perde a esperança, no sentido de esperançar mesmo freiriano, e acaba ficando à mercê do que eles nos dizem.

Fique por dentro 

O relatório As custas de quem? A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo está disponível na íntegra para download neste link. Acesse e confira. 

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