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Publicado em

07/03/2023

“É impossível um país avançar se mais da metade da população ficar para trás”

Ativista afirma que o combate ao racismo e ao facismo parte da luta por justiça, reparação e democracia. E ministra indígena destaca que a invisibilidade secular impactou diretamente as políticas públicas do Estado.

Por Elvis Marques

Sonia Guajajara e Anielle Franco tomaram posse juntas em Brasília. Foto: Ricardo Stuckert

Em 2023 completam-se 20 anos desde a criação da primeira Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após séculos de escravidão no país, o último do mundo a abolir este tipo de regime. Foi o que lembrou, em seu discurso como ministra de Estado da Igualdade Racial, Anielle Franco, em janeiro deste ano.

“Daremos um passo à frente na institucionalização da luta política antirracista com esse ministério, trazendo o racismo para o debate público e institucional de um modo até então não vivenciado na política brasileira, uma conquista fruto das mobilizações sociais incessantes que antecederam e culminaram neste momento”, disse, ao tomar posse, Anielle, educadora, fundadora do Instituto Marielle Franco e irmã da vereadora e defensora de direitos humanos assassinada no Rio de Janeiro em 2018.

Joenia, Guajajara, Dilma, Janja, Lula, Alckmin e Anielle durante a cerimônia de posse. Foto: Ana Pessoa / Mídia NINJA

“Combater o racismo e o fascismo parte, também, da luta por justiça, reparação e por democracia” ministra Anielle Franco

Juntamente com Anielle, tomou posse como ministra de Estado dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, em uma cerimônia recheada de simbolismos. Sonia é a primeira mulher indígena no primeiro escalão de um Governo Federal, e assume o comando de uma pasta recém-criada, promessa de campanha do presidente eleito, após mais de 500 anos de ataques recorrentes aos povos originários, seus territórios e modos de vida. 

“A invisibilidade secular que impacta e impactou diretamente as políticas públicas do Estado é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que provocou uma intensa invisibilidade institucional, política e social, nos colocando na triste paisagem das sub-representações e subnotificações sociais do país. São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e às compreensões indígenas sobre o uso da terra”, manifestou, durante a posse, Sonia, originária da Terra Indígena Araribóia (MA).

“Nunca mais um Brasil sem nós”ministra Sonia Guajajara

O que essas duas mulheres têm em comum, além do verbo lutar correndo em seus corpos, é o desejo, já externado para a imprensa e ao próprio presidente Lula, de que esses ministérios sejam fortes, transversais e com bons recursos financeiros para a necessária formulação, desenvolvimento e implantação de políticas públicas nacionais. 

“Acredito que os ministérios são estratégicos porque é um recado que se dá para a sociedade do compromisso com os temas, e os coloca em lugares que são incontornáveis. E para que de fato eles possam atuar estrategicamente é preciso ter uma dotação orçamentária significativa”, analisa Viviana Santiago, mulher negra, professora, ativista dos movimentos de mulheres negras, uma das maiores especialistas em questões de gênero e raça do país e colunista dos portais AzMina e Lunetas.

“Falando especificamente da questão racial, sabemos que as demandas são muito caras. Penso que a atuação desse ministério [Igualdade Racial] se dê no intenso diálogo de integração da agenda nos demais ministérios, pois precisamos construir políticas públicas que sejam interseccionais”, aposta Viviana, que também é conselheira consultiva da Revista Casa Comum.

>> Acompanhe a atuação da ministra Anielle Franco (@aniellefranco) e da ministra Sonia Guajajara (@guajajarasonia) e saiba mais sobre o Instituto Marielle Fraco em institutomariellefranco.org

Rigor da lei

Durante o evento de posse das ministras no Palácio do Planalto, o presidente Lula sancionou o Projeto de Lei 14.532, aprovado em dezembro no Congresso Nacional, que equipara injúria racial ao crime de racismo, sendo agora inafiançável e imprescritível, prevendo detenção de dois a cinco anos. 

>> Saiba mais sobre o projeto

Caminhos para inclusão e participação social

Em entrevista à Revista Casa Comum, Viviana relembra episódios graves de racismo com repercussão internacional, como o caso do norte-americano George Floyd, morto asfixiado, diante de inúmeras câmeras, pela polícia estadunidense. O crime ressoou no mundo, com manifestações e pressão em governos por políticas antirracistas mais efetivas. No Brasil, episódios semelhantes continuam a acontecer dia após dias, principalmente nas periferias.

Para mudar realmente a realidade, Viviana expõe a necessidade de ir além de um “trabalho ‘epidérmico’, de apenas colocar um pouco mais de cor nas paletas, seja em órgãos públicos, empresas ou organizações. Precisamos de mais níveis de comprometimento”.

Em diálogo com as críticas que as organizações têm recebido pela forma com que incorporaram as políticas de Diversidade e Inclusão, Viviana acredita que é preciso muito mais que apenas garantir a entrada de pessoas negras no mercado de trabalho. “No setor corporativo, temos exemplos de empresas que passaram completamente por reestruturações, fazendo diagnósticos e ampliando a quantidade de pessoas negras em suas equipes. Isso é importante, mas percebemos que não é suficiente, porque é preciso planos de carreira e de entender como e em qual ambiente essas pessoas estão atuando.”

A professora entende que, para a promoção efetiva da equidade racial, é importante falar da necessidade de uma mudança de cultura, “não apenas em alguns aspectos, a cultura permeia tudo que qualquer instituição faz. Essa questão não pode ficar restrita ao 20 de novembro [Dia da Consciência Negra]. O fato é que esse tema é o tema do dia. Nesse processo, precisamos de mecanismos na política pública para que sejam mais eficientes.”

“Existem mudanças que só acontecem a partir de uma legislação federal, mas sem perder de vista a interiorização de sua agenda” – Viviana Santiago

Já no âmbito dos povos originários, Sonia Guajajara aposta na composição de uma equipe plural sob o guarda chuva do Ministério dos Povos Indígenas e autarquias, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) – cujo o nome foi alterado -, e agora é chefiada pela primeira deputada federal indígena Joenia Wapichana. Confira algumas prioridades anunciadas:

  • Recriação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), com a proposta de inovação na governança de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, com maior participação social no poder Executivo;
  • Prioridade em tratar de questões estruturais como o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem, que provocam intoxicação por mercúrio e agrotóxicos, aumentam a insegurança alimentar e ameaçam de extinção os povos isolados e de recente contato;
  • Atuação na demarcação de territórios, proteção e gestão ambiental e territorial, acesso à educação de qualidade, acesso e permanência à universidade pública, gratuita e de qualidade, ampla cobertura e acesso à saúde integral.

A Lei de Cotas

A Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas Raciais, sancionada durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) após intensa mobilização social, caminha para 11 anos desde a sua sanção em 2012. Apesar da comprovada importância da lei para a entrada de pessoas negras e indígenas no ensino superior, movimentos sociais apontam a necessidade de revisá-la e adequá-la à atual realidade brasileira.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a maioria da população brasileira se declara preta ou parda, 55,8%. Segundo o IBGE, em 2018, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou, pela primeira vez, o de brancos, com um total de 50,3% dos estudantes do ensino superior público.

Antes da lei federal, a Universidade Estadual da Bahia (Uneb), há 20 anos, já adotava as cotas raciais em seus quadros, implementadas pela primeira reitora negra da instituição de ensino, Ivete Alves do Sacramento.

Conheça a Campanha #GeraçãoCotasRaciais em cotasraciais.org

Horizonte de mudanças

“A discussão sobre a promoção da equidade racial não é voltada apenas para a população negra, é uma questão de interesse do país enquanto um todo”, afirma Viviana. Por isso, aponta alguns desafios e oportunidades para fortalecer a agenda de equidade racial no Brasil:

  • A municipalização dessa pauta: é importante que ela tenha presença e atuação nacional, mas o governo precisa atuar por sua interiorização, de modo que ela chegue no dia a dia da população;
  • Ampliar o debate com a sociedade brasileira sobre o que significa a Lei de Cotas e seu impacto para as populações negra e indígena, sobretudo no que diz respeito à entrada no Ensino Superior;
  • Desmistificar o atual cenário de que as fraudes no sistema de cotas seria culpa da lei e da população negra;
  • Garantir a responsabilização das pessoas que fraudam ou tentar burlar a atual legislação;
  • Investigar o apagão de dados sobre a questão racial nos últimos, como o atraso na realização do Censo do IBGE.

“Promover o desenvolvimento da população negra é incidir no desenvolvimento do país. É preciso fazer um enfrentamento ao racismo na vida da população negra, seja no âmbito privado, corporativo, das escolas, em todos os âmbitos da vida do sujeito. Porque o racismo acontece em todos os âmbitos, ele é estrutural, e faz com que a necropolítica seja implementada.”

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