Publicado em
31/01/2024
Em entrevista à Revista Casa Comum, diretor-executivo do Instituto de Defesa da População Negra argumenta que não há “solução mágica” para resolver as questões raciais no Judiciário. “É necessário um esforço contínuo”, afirma.
Por Elvis Marques e Maria Victória Oliveira
A composição do Supremo Tribunal Federal (STF), em breve, será de 10 ministros homens e uma ministra mulher. Essa é a imagem da Corte máxima do Judiciário brasileiro após a indicação do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, ao cargo pelo presidente Lula.
Ao longo dos meses em que se especulou quem assumiria a vaga deixada pela ex-ministra Rosa Weber, o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), juntamente com diversos movimentos negros, promoveu a campanha Ministra Negra no STF, cujo intuito era pressionar o presidente da República a indicar “uma ministra negra e progressista”.
A iniciativa se deu em um contexto alarmante: em 132 anos, a Suprema Corte contou com apenas três ministras – nenhuma negra – diante de 169 ministros. Homens negros foram apenas três.
Apesar de não ter alcançado êxito em seu principal objetivo, a campanha conseguiu pautar a sociedade sobre a importância de se discutir a temática da sub-representatividade, racial e de gênero, nas múltiplas instâncias do sistema de justiça brasileiro.
“A necessidade de realizar uma campanha a nível global para que a nomeação de uma mulher negra ao STF seja minimamente considerada em um país de maioria negra, que nunca teve uma mulher negra no STF desde a sua criação, destaca de maneira contundente o racismo estrutural enraizado na sociedade brasileira”, analisa Joel Luiz Costa, diretor-executivo do IDPN, e Gabriella Batista, coordenadora de projetos do IDPN.
Foto: Divulgação IDPN
Após a campanha, o Instituto de Defesa da População Negra, em parceria com a Fundação Friedrich Ebert no Brasil, lançou o Observatório Raça e Justiça, que visa democratizar a presença de pessoas negras, indígenas e afro-indígenas no Judiciário, apontando erros, acertos e propondo novos caminhos por meio de políticas públicas.
Joel Luiz explica que ao fornecer dados e análises críticas, o Observatório busca sensibilizar diversos públicos, incluindo acadêmicos, profissionais do sistema de justiça, organizações de direitos civis, mídia, políticos e a opinião pública, sobre a importância de enfrentar o racismo institucional e promover a igualdade racial no sistema judiciário.
A Revista Casa Comum conversou com o diretor-executivo do IDPN e com Gabriella Batista, coresponsável pela idealização e estruturação do Observatório, para analisar os resultados da Campanha Ministra Negra no STF e explicar como funcionará o Observatório Raça e Justiça. Confira a seguir.
Revista Casa Comum: O patriarcado e o racismo contribuem para a falta de representatividade em espaços como o STF. Que outras ‘razões’ podem existir para esse cenário?
Joel Luiz Costa: Uma das razões centrais é a perpetuação de estruturas de poder historicamente dominadas por grupos brancos. Ao longo da história, as instituições judiciárias foram moldadas por padrões culturais e sociais que muitas vezes excluíram minorias étnicas e mulheres, dificultando sua ascensão a cargos de destaque.
“A tradição de reprodução dessas estruturas pode criar barreiras significativas para a entrada de indivíduos não brancos no STF”
Outro ponto a considerar é a ausência de políticas eficazes de promoção da diversidade e inclusão. Sem um compromisso explícito com a representação plural, a tendência é que as nomeações e ascensões no STF continuem a reproduzir desigualdades históricas.
Além disso, a falta de oportunidades equitativas para o avanço de profissionais não brancos no sistema judiciário é uma barreira significativa. Acesso desigual à educação de qualidade, discriminação no ambiente de trabalho e obstáculos sistêmicos podem limitar as chances de profissionais talentosos e capacitados de alcançarem posições de destaque no Judiciário.
Revista Casa Comum: Diante desse cenário, o que pode ser feito para promover a diversidade e inclusão?
Gabriella Batista: Para promover mudanças efetivas, é necessário abordar essas questões sistemicamente, implementando políticas inclusivas, combatendo a discriminação estrutural e criando oportunidades igualitárias para todos os cidadãos, independentemente de sua origem étnica ou gênero.
É imperativo implementar um monitoramento eficaz da entrada, mobilidade e posição de pessoas negras, indígenas e não brancas no sistema judiciário, incluindo o STF. Esse monitoramento é fundamental para garantir a transparência e a prestação de contas em relação aos esforços de promoção da diversidade e inclusão.
Portanto, o monitoramento sistemático e transparente é uma ferramenta essencial para transformar intenções em ações concretas, assegurando que o sistema judiciário se torne verdadeiramente representativo da diversidade do povo brasileiro.
Revista Casa Comum: O que a não nomeação de uma ministra negra representa para a sociedade brasileira?
Joel Luiz Costa: A não nomeação de uma ministra negra para o Supremo não apenas representa uma perda para a diversidade e representatividade no mais alto tribunal do Brasil, mas também evidencia desafios mais amplos relacionados ao sistema de justiça e à sociedade como um todo.
Quando o STF e outras instituições judiciais carecem dessa representação diversificada, há um risco real de que as decisões não considerem adequadamente as realidades e desafios enfrentados por grupos minoritários. Isso não apenas afeta a qualidade das decisões judiciais, mas também mina a legitimidade e a confiança nas instituições judiciais, pois a população pode perceber a falta de representatividade como um sinal de desconexão entre o sistema de justiça e a sociedade que ele pretende servir.
A presença de uma ministra negra não apenas diversificaria as perspectivas presentes nas discussões e decisões judiciais, mas também contribuiria para uma maior sensibilidade em relação às questões raciais e sociais, de modo geral. Isso é particularmente importante em um país como o Brasil, onde a história é marcada por desigualdades raciais persistentes.
Revista Casa Comum: Qual balanço o IDPN faz da campanha?
Gabriella Batista: O IDPN faz um balanço bastante positivo da campanha, que teve ampla repercussão, ganhou notoriedade e teve impacto significativo na agenda pública, conseguindo pautar a importância da composição de uma Suprema Corte mais diversa e representativa da população brasileira.
“Independentemente da indicação do presidente Lula, a discussão sobre diversidade no STF se tornou um tópico relevante na esfera pública.”
A escolha de narrativas que extrapolam o mundo jurídico foi um diferencial. A campanha amplificou sua mensagem para camadas da população que não necessariamente acompanham a política institucional.
Ao desmistificar um debate técnico e complexo com pautas de representatividade, infância, sonhos e arte, a campanha alcançou espaços não tradicionalmente ocupados por discussões jurídicas.
“Hoje, não há quem não olhe para o STF e não sinta falta de uma ministra negra e de ministros que verdadeiramente refletem a diversidade demográfica brasileira.“
Revista Casa Comum: Como se deu a iniciativa de lançar o Observatório Raça e Justiça? Qual é, ou são, o objetivo desse espaço?
Gabriella Batista: A ideia de lançar o Observatório Raça e Justiça surgiu da necessidade de abordar as disparidades raciais significativas no sistema de justiça brasileiro e do desejo de promover a justiça racial e a igualdade no acesso à justiça.
“A iniciativa reflete a preocupação com a representatividade e a equidade no sistema judiciário, reconhecendo a importância de abordar as questões raciais de forma sistemática e proativa.”
O Observatório visa fornecer subsídios para políticas públicas mais eficazes e mudanças na legislação para combater o racismo sistêmico no sistema de justiça. Por meio da análise de dados e da promoção de audiências com parlamentares, a iniciativa busca influenciar a formulação de políticas e ações legislativas que promovam a igualdade racial e a justiça.
Revista Casa Comum: Quais ações podem ser desenvolvidas pelo Observatório?
Joel Luiz Costa: O Observatório Raça e Justiça planeja desenvolver diversas ações para cumprir sua missão de promover o debate e a avaliação contínua sobre políticas públicas que visem aumentar a diversidade racial do sistema de justiça brasileiro, apontando erros, acertos e propondo novos caminhos.
Algumas das ações a serem desenvolvidas pelo Observatório incluem o monitoramento e análise da composição racial do sistema de justiça; a sensibilização e educação; a promoção de audiências e reuniões com parlamentares; alianças estratégicas, dentre outras.”
“O papel proativo do Observatório contribuirá para um debate informado e para a implementação de medidas efetivas visando a construção de um sistema mais justo e inclusivo.”
Revista Casa Comum: Quando a iniciativa entra no ar? Haverá um site próprio? Como vai funcionar?
Gabriella Batista: Ainda não definimos uma data de lançamento para a iniciativa. No entanto, considerando as ações planejadas, é razoável esperar que a ação entre em operação após a definição de seus recursos e parcerias necessárias.
Quanto à existência de um site próprio, no momento, estamos elaborando um espaço oficial do Observatório com informações detalhadas, recursos, relatórios e atualizações regulares.
Além disso, a metodologia aplicada será construída em parceria com o Observatório da Branquitude, incluindo a definição de objetivos e escopo, coleta e análise de dados, colaboração com legisladores, avaliação do projeto e identificação de riscos iniciais .
Revista Casa Comum: Mais representatividade racial no sistema de justiça brasileiro seria um caminho para a diminuição das inúmeras desigualdades, casos de racismo e violações de direito que acontecem diariamente em função da raça? Qual é a relação entre essas duas questões?
Joel Luiz Costa: Sim, a busca por mais representatividade racial no sistema de justiça é um caminho importante para enfrentar as inúmeras desigualdades, casos de racismo e violações de direitos que ocorrem diariamente em função da raça. A relação entre essas duas questões é fundamental para compreender a importância da diversidade racial no sistema de justiça e seu impacto na promoção da igualdade e justiça social.
“A presença de profissionais negros e indígenas no sistema de justiça pode contribuir para aumentar a legitimidade e a confiança nas instituições judiciais por parte das comunidades racialmente diversas.”
Profissionais do sistema de justiça que refletem a diversidade racial da população brasileira podem trazer sensibilidade cultural e empatia para questões que afetam diretamente as comunidades negras e indígenas, resultando em decisões mais justas e equitativas.
Entretanto, é importante ressaltar que a busca por mais representatividade racial no sistema de justiça é um caminho importante, mas não é o único.
É necessário também garantir que esses profissionais tenham condições adequadas de trabalho e acesso a recursos para desempenhar suas funções de forma eficaz.
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